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Claudio Moura Castro

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As tribos da saúde e suas disputas

Nas discussões sobre coronavírus, cada grupo vê o mundo com suas lentes e usa a linguagem técnica própria da sua especialidade

Por Claudio Moura Castro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 Maio 2020, 21h45 - Publicado em 25 Maio 2020, 17h09
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  • Trocamos o futebol por discussões acerca do coronavírus. Alguma coisa têm em comum os dois assuntos, pois são disputas ferozes entre times. No futebol é mais fácil decidir, ganha quem fizer mais gols. Na saúde, ganha quem tiver razão, ao apontar causas, consequências ou remédios. Mas ao contrário do futebol, em que os resultados aparecem após noventa minutos, na saúde pode levar muito tempo para conhecer os vencedores. Nesse ínterim, cada lado brada mais alto.

    Fugiríamos do assunto se fôssemos examinar os altos decibéis e baixa lucidez das discussões de governantes e leigos, sobretudo, quando está filtrada por persuasões políticas ou ideológicas.

    Exploramos as dissenções entre gente que sabe das coisas. De fato, não são poucos os desacordos dentre profissionais bem qualificados. Parte do problema resulta de que cada tribo vê o mundo com suas lentes e usa a linguagem técnica própria da sua especialidade. Dentro do marco da sua visão, podem estar certos, mas isso não atenua os desacordos com outros grupos. Vejamos o que parecem ser as três tribos mais representativas.

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    Uso aqui o que Max Weber chamou de ‘tipos ideais’. Ou seja, abstrações simplificadoras. Não necessariamente descrevem Doutor A ou Professor B, mas um perfil genérico do grupo como um todo. As descrições são inevitavelmente simplificadas e incluo exageros propositais.

    Há os médicos clínicos, há os pesquisadores (que podem ser médicos ou não) e há os epidemiologistas (há também infectologistas e sanitaristas, mas são híbridos, escapando das simplificações aqui praticadas). Todos lidam com saúde, embora cada um veja o mundo com os olhos da sua disciplina. Cada grupo tende a trilhar com coerência os seus caminhos próprios, mas pode pisar em falso quando palpita fora do seu território

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    Os clínicos cuidam de doentes. Fazem a anamnese, chegam às suas conclusões e, daí para frente, têm de tomar decisões. A escolha da marca da aspirina é irrelevante. Mas há um sem-número de outras situações em que há alternativas. delicadas. Que remédios usar? Entubar? Internar, pesando o perigo de infecção hospitalar com os riscos de complicações em casa? E diante de uma UTI transbordando, decidir quem fica de fora.

    O que quer que aconteça, tem de desembocar em uma decisão. Em enfermidades como ao Covid-19, a ciência apenas vai até a metade do caminho. Sendo assim, tem que usar o seu olho clínico para agir, sendo obrigado a tomar decisões com base em informações mais do que incompletas. Para isso, ele foi preparado, durante longos anos de internato e residência.

    O pesquisador na área da saúde é outra variedade da mesma espécie. Pode ser médico ou oriundo das áreas biológicas. Além de mais intimidade com o que acontece nas ciências básicas, tem que ser ‘especialista’ no método científico, sentindo-se à vontade com protocolos de testes, grupos de controle, randomização de amostras e outros entes – diáfanos para os médicos clínicos. Acostumou-se a esperar anos para ver liberada uma droga nova. Cumpridas as liturgias do experimento, têm o desafio de usar de forma sofisticada a estatística inferencial, para tirar conclusões delicadas e, muitas vezes, inconclusivas. Análises de variância e regressões multivariadas costumam ser suas ferramentas. Mais de mil experimentos controlados estão em curso, testando diferentes fármacos e coquetéis. É daí que surgirão as terapias confirmadas.

    Boa parte da confusão que observamos resulta de profissionais falando sobre assuntos que fogem da sua disciplina, ainda que sejam na área da saúde

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    O terceiro perfil é o epidemiologista. Doentes, óbitos e fatores intervenientes geram números que são a sua matéria prima. Nos seus modelos, a epidemia pode ser uma caixa preta como outra qualquer. Não é estritamente necessário conhecer e nem entender o que está dentro dela. Basta medir o que entra e o que sai. No momento presente, os modelos sofrem com dados pouco confiáveis. O número de notificações da moléstia é muito inferior ao real. Causa mortis é outro dado impreciso, além de atrasado. Parte da sua arte é tirar o máximo de estatísticas falhas.

    Como sugere a profusão de análises recentes, não precisa ser médico. Mas tem que ser exímio estatístico e perito em modelagem matemática. Olha para pequenos ou gigantescos conjuntos de números e aplica os mesmos modelos. Tanto faz se são doentes, jogos de futebol, corridas de cavalos ou cotações da bolsa.

    As três categorias, quando discutem com seus pares, tendem a falar a mesma língua e ter discussões que podem ser inteligentes e produtivas – ou não. No momento presente, onde a ciência é avara em conclusões, o tiroteio das discussões tem mais bala perdida do que no alvo. É normal na história da ciência. Mas, principalmente, não foram preparadas para operar fora do seu ‘habitat’.

    Médicos pouco aprendem de estatística. Entre seus doentes e uma linda tabela, ficam com os primeiros. Não têm paciência para esperar resultados dos labirintos trilhados pelos protocolos de autorização de fármacos. Estão diante de um paciente e precisam agir. Por isso, aceitam evidências que não passam nos critérios dos pesquisadores. Não tem grupo de controle? Paciência. Se há indícios de que funciona, melhor do que nada.

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    Estão próximos dos seus doentes – no caso da presente epidemia, perigosamente perto. Sua matéria prima são pessoas concretas – que encontram nos seus consultórios ou enfermarias. Foram treinados para enxergar neles o que ninguém mais pode fazê-lo. O doente à sua frente não é uma estatística, mas um ser complexo e pleno de emoções.

    Os pesquisadores se escandalizam com as agressões aos seus adorados protocolos, engendrados nos mais ortodoxos princípios do método científico. São puristas, foram preparados para sê-lo. As discordâncias com os médicos são inevitáveis.

    Para pesquisadores, o caso individual é um ente irrelevante para sua análise. É matéria prima que apenas faz sentido quando agrupada, de forma a permitir a comparação entre diferentes distribuições. Esses tomaram hidroxicloroquina. Outros placebo. Tinham comorbidades prévias? Melhora o quadro clínico comparado com o grupo de controle? Revirando os dados no computador, podem chegar a conclusões bastante seguras. Tipicamente, examinam um conjunto de dados, gerados por experimentos bem definidos e controlados. E se não há números, não há o que estudar.

    Os epidemiologistas lidam com estatísticas de incidência de enfermidades, óbitos, recuperações e tudo mais. Suas fontes são pesquisas de campo, dados administrativos ou censitários. Ao contrário dos pesquisadores, não constroem experimentos, apenas observam o mundo como encontram. Tudo é agrupado e examinado por métodos estatísticos – nisso são semelhantes aos pesquisadores. Alguns modelos que circulam são assinados por gente que tanto lida com doentes ou com ações da bolsa. O método de trabalho é o mesmo. Também como os pesquisadores, suas conclusões captam regularidades que não podem ser observadas nos casos individuais. Por exemplo: a transmissão do vírus está perdendo velocidade?

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    Cada grupo tem a sua contribuição única para lidar com essa pandemia catastrófica. E como se pode esperar, mesmo dentro das suas áreas respectivas, não são poucas as divergências. Porém, boa parte da confusão que observamos resulta de profissionais falando sobre assuntos que fogem da sua disciplina, ainda que sejam na área da saúde. Ainda assim, é na sinergia entre as três áreas que virão as boas ideias.

    Os pesquisadores e epidemiologistas teorizam, conjecturam ou pontificam. Mas em última análise, o desaguadouro de todas as certezas e incertezas são os médicos clínicos. É diante deles que estão os infectados pelo Covid19. A eles cabe decidir e agir.

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