Na evolução das proezas do Homo sapiens, a ciência é um bebê. Os gregos observaram a natureza e formularam hipóteses engenhosas. Mas não juntaram uma coisa com a outra. A medicina tradicional — incluindo a chinesa — sempre parou nas boas intuições. Mas a ciência cresceu e só foi entendida ao casar a teoria com a prática: imagine suas ideias, porém nada feito sem confrontá-las sistematicamente com o mundo real.
No século XIX, surgiram avanços médicos apoiados em números. Semmelweiss verificou que, nas enfermarias onde se lavavam as mãos, as fatalidades no parto eram menos numerosas. O epidemiologista inglês John Snow (1813-1858) marcou no mapa onde moravam as pessoas que haviam morrido de febre tifoide. Na física, soltando-se um frasco de hidroxicloroquina de um 3º andar, seja em Pisa, seja em Wuhan, ele leva o mesmo tempo para espatifar-se no solo. Por isso Galileu precisou de poucas observações para formular a lei da queda dos corpos. Mas nas áreas sociais e na medicina tantas variáveis influenciam os resultados que as regularidades só se tornam visíveis nos grandes números. Daí o reinado da estatística inferencial e da epidemiologia.
Com os avanços metodológicos, tornou-se inaceitável prescrever um fármaco que não cumprisse um elaborado protocolo de testes. Análise de variância, duplo-cego, randomização, grupos de controle são os mantras sagrados dessa nova ortodoxia. Lá pelos anos 1970, a medicina baseada em evidência vira o credo oficial.
“Como cidadãos, cabe-nos separar os fatos das ambiguidades malévolas”
Com o atrevido coronavírus, exuma-se uma polarização que parecia enterrada. O vírus é danadinho, e os remédios sugeridos não foram devidamente testados. Há evidência, porém é solta e desencontrada, como é o caso da hidroxicloroquina. Criou-se um impasse. Os que a recomendam não estão mais mal servidos de certezas do que na medicina do passado. Mas não é ilegítimo o ceticismo de quem prefere esperar por provas mais confiáveis.
Comissões de ética se enfurecem com as falhas metodológicas de alguns testes. Mas a ciência sempre conviveu com informações incompletas e sujeitas a erros. Se os dados são imperfeitos, conta a convergência de resultados.
Há duas agendas latentes na brigalhada. De um lado, o purismo daqueles aferrados aos protocolos dos testes e ao juramento de Hipócrates (nunca causar danos). No outro lado, estão os médicos da “trincheira”. Tentemos tudo. Se parece funcionar, por que não? Aliás, eles próprios tomam o contestado remédio. Alinhar-se com um ou outro lado não é uma decisão puramente científica. São riscos comparados com riscos. E o peso da morte, do sofrimento e da bancarrota tem valores diferentes para cada um.
Há também a agenda política, necessária, mas sujeita a escorregões. Cada lado defende as ideias que lhe convêm. Tampouco aos cientistas não faltam crenças e preconceitos. O campo é minado. Há controvérsias legítimas entre os profissionais da saúde. Há o uso oportunista dessas discrepâncias. Há também um vulcão de palpites desencontrados nas redes sociais. Como cidadãos, cabe-nos aprender a separar os fatos das ambiguidades malévolas.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685