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Coluna da Lucilia

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Calor humano

É cada vez mais raro ouvir uma voz verdadeira do outro lado da linha

Por Lucilia Diniz
26 set 2024, 18h44
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  • Você precisa falar com uma empresa. Entra no site, procura o telefone e nada. Com sorte, acha o ícone de um fone branco dentro de um balão verde para iniciar uma conversa por aplicativo. Não adianta ligar para o número na tela: ninguém vai atender. Resignado, detalha em uma longa mensagem aquilo de que precisa. Ao enviar, recebe de volta “olá, como posso ajudar?”.
    Comprar uma passagem, encomendar um bolo para uma festa, reservar uma mesa no restaurante: nessas e em infinitas outras situações, você provavelmente usará um chat ou outro meio de comunicação instantânea.
    Talvez você até já tenha se esquecido de que aquele aparelho que está sempre por perto se chama telefone – “celular”, um adjetivo, virou seu nome. Por meio dele, passamos a ter mil facilidades na ponta dos dedos. E, com isso, ele perdeu quase totalmente sua função original.
    Os nativos digitais da geração Z e agora os da novíssima geração alfa evitam telefonemas – acham rude quando toca o aparelho. E, por ter se tornado raro, o gesto de ligar para outra pessoa se tornou especial.
    Como sabemos, “especial” também costuma significar “valioso”. Assim, ser atendido ao telefone vai se tornando um serviço pago. Nos Estados Unidos, cartões de crédito e provedores de internet, por exemplo, vêm cobrando taxas mais altas para clientes que queiram o privilégio do atendimento pessoal.
    Não é tanto por nostalgia – mas pelo sentimento de exclusividade implicado no “calor humano”. Ter acesso a uma linha direta que conecte você a um representante se tornou um símbolo de status, como já detectaram algumas pesquisas no país.
    No Brasil, a expansão da rede telefônica, nos anos 1980, popularizou os canais de atendimento. De um serviço extra, eles se tornaram obrigatórios com o Código de Defesa do Consumidor, em 1990. Não era mais possível deixar as dúvidas e queixas do cliente sem resposta.
    Na década seguinte, quando criei minha marca de produtos de baixa caloria, fiz questão de ir além. O número na embalagem não servia só para as perguntas mais corriqueiras. Havia, na ponta de lá, uma equipe de culinaristas e nutricionistas pronta a dar dicas de receitas e de boa alimentação. Não era raro que as consumidoras fizessem, ao pé do ouvido das atendentes, desabafos sobre o ganho de peso – e que até mandassem um mimo ou uma mensagem depois do telefonema.
    Acredito que, em nossos tempos de “personal tudo”, muitas se dispusessem a pagar para ter aquela atenção bem treinada e disponível – ainda que hoje haja muitos meios virtuais para trocar informação nutricional, culinária e até para falar de sentimentos.
    Quando o teleatendimento surgiu, era comum que as pessoas estranhassem a sequência ensaiada de frases e os nomes evidentemente inventados que os atendentes usavam – até hoje, aliás, adotam-se pseudônimos nesses canais.
    Com o tempo, nos acostumamos àquela forma particular de conversa. Até que ela se tornou indesejável. A voz que atendia você também telefonava – para vender produtos, para fazer pesquisas. O que era atenção passou a ser “perturbação” e, por isso, perdeu valor.
    É bem possível que a inteligência artificial logo nos propicie um meio caminho entre a voz real de outras décadas e os robôs de hoje. Quem sabe em breve não voltemos a ligar para um telefone e nos atenda uma pessoa agradável – e inexistente.

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