
No segundo domingo deste mês, como acontece todo ano, os americanos se reuniram diante da tevê para assistir à final do campeonato de futebol americano. O evento mobiliza a nação, e a tradição abrange até os petiscos servidos para ver a partida. Mas, em 2025, uma das iguarias mais populares desse menu, o guacamole, se viu ameaçada. Isso porque, se o presidente Trump de fato aumentasse as tarifas impostas aos vizinhos do sul e do norte, o abacate e o tomate, centrais para o preparo, ficariam proibitivos para os americanos — o México é o maior exportador de ambos para os Estados Unidos, e o Canadá contribui com 20% dos vegetais consumidos no país. O impacto de medidas assim, porém, pode ir muito além de um snack eventual.
A ideia de um sistema alimentar “America First”, que priorize a produção interna dos EUA, esbarra em desafios logísticos e culturais. Afinal, o país pode até produzir o próprio trigo, mas não consegue cultivar todo o abacate que consome. Nem o morango, o pepino, o pimentão, a laranja. Mesmo os mirtilos para as blueberry pies, algo tão americano, não dão lá o ano todo.
Ao longo da história, o protecionismo muitas vezes bagunçou a mesa da população. No século XIX, leis que taxavam grãos importados pelo Reino Unido, a fim de fortalecer o trigo britânico, fizeram subir o preço do pão, ocasionando motins. No Brasil, um alimento bem menos básico quase levou o país a um conflito internacional. Falo do episódio que ocorreu entre 1961 e 1963, jocosamente apelidado de “Guerra das Lagostas”. Elas são abundantes em águas nordestinas, como nós sabemos — e os franceses também. Tendo perdido suas colônias africanas, eles viram o estoque do apreciado crustáceo baixar e resolveram vir capturá-lo por aqui.
“Hoje, portanto, não é tão simples dizer: ‘Se não têm guacamole, que comam cream cheese’ ”
Com a atividade local ameaçada, o governo brasileiro reagiu, argumentando que as lagostas eram protegidas pela soberania marítima. A França revidou dizendo que, como elas saltavam, eram peixes, ficando fora dessa regra. Um comandante da Marinha do Brasil ironizou o drible: se era assim, então canguru era ave? A briga extrapolou a piada, com navios dos dois países se deslocando na região. Foi preciso envolver até a ONU para evitar que estourasse uma guerra de fato.
Medidas protecionistas não precisam chegar à beira de enfrentamento transatlântico para afetar a população. Seus efeitos tendem a ser mais imediatos — o que não impede que continuem sendo propostas. Em 2011, devido a uma restrição a laticínios importados, os noruegueses foram comprar manteiga na Suécia. Para os americanos, que importam muita fruta e verdura, uma política de taxação de importados pode, por exemplo, piorar a saúde pública, especialmente nos “desertos alimentares”, onde é mais fácil encontrar salgadinhos e refrigerantes.
E o impacto ultrapassa as fronteiras de lá. Se países afetados revidarem taxando produtos americanos, o custo desses aumentaria globalmente. No Brasil, isso significaria, por exemplo, pães e massas mais caros, pois importamos trigo dos EUA. E não só de pão vive o ser humano. A economia altamente globalizada moldou os padrões de consumo em toda parte. Hoje, portanto, não é tão simples dizer: “Se não tem guacamole, que comam cream cheese”.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932