
Você está aqui, lendo esta página agora. Parou o que estava fazendo para se dedicar a este texto. Parece uma decisão simples, feita por você e por mais ninguém. Mas será que é mesmo? Essa pergunta, aparentemente banal, abre um campo de reflexão que pode nos levar muito longe: até onde nossos atos são realmente responsabilidade nossa?
A ideia de que temos “livre-arbítrio” está tão enraizada que raramente a questionamos. Crescemos convencidos de que, a cada bifurcação, somos nós que resolvemos a estrada a tomar. Acreditamos que nosso discernimento é a última instância, capaz de optar de forma independente diante das possibilidades postas. O conceito nos faz ter a convicção confortável de que o comando de nossas vidas está em nossas mãos.
Mas, se olharmos com mais cuidado, veremos que cada resolução tomada por nós tem raízes que se estendem muito além do momento decisório. Há influências que vêm da família em que nascemos, das experiências que tivemos, das oportunidades e limites que encontramos — e até de fatores totalmente externos ao nosso controle, como a época ou o ambiente cultural em que habitamos. Assim, cada gesto nosso passa a ser visto como o resultado de uma soma que começou muito antes de a nossa consciência entrar em cena.
Será que estamos mesmo exercendo o livre-arbítrio a todo momento, seja quando resolvemos não aceitar uma proposta duvidosa ou vamos a uma feijoada e nossa boa alimentação vira só uma lembrança? Muitas das nossas escolhas brotam de impulsos, desejos antigos ou associações inconscientes, mais do que de um cálculo racional feito na hora.
Isso não significa que vivamos presos a um roteiro fixo, sem possibilidade de mudança. A vida é generosa em imprevistos. Um encontro inesperado, uma conversa reveladora, um acontecimento marcante são ocasiões capazes de reorganizar nossas peças internas e alterar a direção que seguimos. Até mesmo uma frase ou um olhar podem abrir uma visão antes não vislumbrada sobre uma situação.
“Vinicius de Moraes dizia que a vida é a arte do encontro”
Essas mudanças, no entanto, raramente acontecem isoladas. Quando duas ou mais pessoas se encontram, cada uma carregando memórias, afetos e marcas que não escolheu, surge um campo fértil para novas ideias e possibilidades. É no diálogo entre essas bagagens que algo novo pode nascer: uma decisão, uma criação, um desvio de rota.
Vinicius de Moraes dizia que a vida é a arte do encontro. Talvez nesse espaço que nos coloca diante do outro e do inesperado resida nossa parcela mais autêntica de escolha. Não controlamos aquilo anterior a nós, mas podemos escolher como reagir ao que (e a quem) encontramos pelo caminho.
Talvez o livre-arbítrio não seja um poder absoluto, mas uma fresta. Por ela fazemos escolhas significativas, mesmo que condicionadas pelo nosso meio. No fim das contas, talvez a indagação mais interessante não seja se somos livres ou não, mas o que fazemos com as cartas que recebemos.
Então eu lhe pergunto: como você se tornou quem você é? Terá sido pelos acasos que antecederam sua existência? Pelas pessoas que lhe trouxeram surpresas? Ou por uma combinação de tudo isso? A resposta, qualquer que seja, talvez diga mais sobre o fio das suas escolhas do que qualquer teoria.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958