Outro dia fui recordada, mais uma vez, da riqueza da sabedoria popular com o seguinte ditado: “A mesma água que amolece a batata endurece o ovo”. No mundo real, esse é um fato tão cotidiano que nem pensamos sobre ele. Mas, transportado para o terreno das metáforas, ele se torna uma mensagem poderosa sobre transformação e resiliência.
A água em ebulição, simples e transparente, é sempre a mesma. Se uns graus mais quente ou mais fria, não faz tanta diferença no resultado. O amido da batata se liga ao elemento que a circunda, deixando-se infiltrar e suavizar, enquanto as proteínas do ovo, ao contrário, endurecem com o calor. Assim, o que o provérbio nos comunica é que o efeito das mudanças pelas quais passamos depende menos das circunstâncias do que da matéria de que somos feitos. Cabe pensar o que significam as diferentes reações.
Quando a batata ainda é um tubérculo sob a terra, o amido é onde se armazena o açúcar que a faz crescer, enquanto não tem as folhas para fazer fotossíntese. A proteína da clara e da gema também tem a função de nutrir o futuro pintinho, que pode ou não se desenvolver dentro do ovo.
“É preciso perceber para que lado nossa natureza está se dirigindo e, se for o caso, corrigir a rota”
Assim como não podemos afirmar de maneira absoluta qual alimento é melhor, se a batata ou o ovo, tampouco cabe dizer qual é a forma mais adequada de reagir diante de uma mesma situação. Não escolhemos se somos feitos de amido ou proteína, mas, como humanos, seres inteligentes e dotados de raciocínio, podemos ter consciência dos limites de nossa substância, aquilo que nos compõe e nos mantém vivos. Em alguns momentos, a temperatura da água indicará se seria melhor amolecer e se deixar levar, abrindo-se, ou endurecer sob a camada mais externa, que entra em contato com o entorno.
Há quem louve a batata do dito como símbolo de facilidade de adaptação. Ela se torna maleável, modificando-se mais e mais em resposta ao calor, mas mantendo seu sabor suave e identificável. Já outros poderiam dizer que quem, como ela, amolece demais pode acabar esmagado, feito um purê.
Quanto ao ovo, se de um lado é possível defender que, no adágio popular, ele significa a rigidez e a inflexibilidade, de outro se poderia afirmar que, sob a casca, o ovo cru é amorfo, mas, aquecido, se torna mais consistente e define mais sua forma; tem sua “personalidade” moldada pelas condições a que é submetido.
Tenho certeza de que qualquer um que se submeta à mudança sentirá que sua resposta pode variar, segundo o momento. Alguém que, por questões de saúde, tem de se privar de algum hábito, como fumar ou comer açúcar, pode ter inicialmente a reação da batata e se desfazer, perder a forma, diante do enorme desafio de mudar costumes muito arraigados. Ou pode adotar a postura de se manter firme, mesmo que a sua porção mais externa rache ao calor, como o ovo.
Em minha jornada, consigo assinalar momentos em que fui ovo ou batata. Às vezes, é preciso perceber para que lado nossa natureza está se dirigindo e, se for o caso, corrigir a rota. De uma forma ou de outra, estamos expostos a fatos que, em muitas ocasiões, não podemos controlar. O mais importante, então, é saber abraçar a mudança, deixar-se envolver pela água e sentir seu calor, tendo a sabedoria de se deixar moldar da maneira que vá resultar, ao final da metamorfose, na melhor forma possível de se apresentar ao mundo.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846