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Coluna da Lucilia

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O prato da semana

A feijoada como bandeira de afirmação nacional.

Por Lucília Diniz
10 fev 2022, 16h12
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  • Até 1922 o Brasil não era lá muito brasileiro. Pelo menos no sentido que hoje nós nos consideramos brasileiros. Não estou falando apenas de livros, pinturas e músicas, que ganharam naquele ano uma cara mais tropical, como se sabe. Falo de um modo geral daquele país dos tempos da Belle Époque: da moda das melindrosas, ditada por Paris; do sotaque carregado das pessoas, em geral lusitano ou italianado, denunciando a origem de seus pais ou avós; do trânsito incipiente de carros importados nas vias acanhadas. Penso sobretudo nas diferenças da gastronomia nesses cem anos de história. Para se ter uma ideia, nem mesmo a feijoada existia.

    “Ué, Lucilia, mas a feijoada não é uma herança dos escravos?” Sim, mas eu me refiro ao prato que é saboreado hoje, nos almoços de quartas e sábados, com “paio, carne-seca, toucinho no caldeirão”, como enumerava aquela espécie de samba-receita de Chico Buarque. A música lista os ingredientes: arroz branco, linguiça, torresmo, farofa, malagueta, couve mineira e laranja, Bahia ou da Seleta. A feijoada foi cantada também em poesia. Bem antes de Chico, seu futuro parceiro Vinicius de Moraes ensinava em versos uma amiga a prepará-la, acrescentando um detalhe que não lhe passou despercebido: a laranja, cortada em fatias, deve ser servida gelada.

    Na versão do músico ou do poeta, essa é a feijoada que realmente faz jus ao adjetivo “completa”. Por mais que a base seja a mesma, o prato guarda relação remota com o preparado nas senzalas até o século XIX. Difícil saber, pela grande distância no tempo, se nossos conterrâneos dos anos 20 realmente apreciavam tanto assim a feijoada. Sofisticados como eram, provavelmente também não dispensavam a gastronomia mais glamurosa da época, em que, nas mesas mais chiques, lagostas com trufas e ervas finas disputavam espaço com coquetéis de camarão. E talvez ainda não resistissem às almôndegas macias, às carnes com molhos encorpados ou às costeletas de vitela cozidas com parmesão, para citar alguns pontos altos do repertório ítalo-americano então em voga.

    A feijoada, na realidade, seria mais do que uma questão de paladar. Ela serviu aos propósitos de afirmação nacional, pauta que traduzia o espírito daquela época. Surgida no Brasil profundo, ela foi uma espécie de contraponto à cozinha europeia. Para os modernistas, que implicavam com o formalismo dos portugueses, a colocação pronominal obedecendo à forma mais culta deveria soar equivalente a um bacalhau muito salgado. Medida com essa régua, a feijoada se equiparava à língua mais coloquial que eles defendiam. E foi assim que, mais do que um prato, a feijoada virou uma bandeira.

    Mas talvez a maior diferença entre a gastronomia de 1922 e 2022 seja que um século atrás o que imperava eram os alimentos frescos, in natura. Não pela consciência nutricional daquela geração, mas, claro, pelo simples fato de que inexistiam a comida industrializada – com exceção, talvez, de uma goiabada em lata – e a geladeira, que por aqui só chegaria no final daquela década. E, sem ela, a feijoada do poeta, desfalcada da laranja gelada, não seria completa.

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