Às 7 e meia da manhã, o chef já está diante de sua equipe. Naquele dia, mais uma vez, eles vão preparar e servir 1 000 refeições. Não porque aquela cozinha seja a de um enorme e concorrido estabelecimento. Mas porque centenas de pessoas que perderam tudo nas enchentes do Rio Grande do Sul dependem deles para comer. Nutrir os desabrigados foi a maneira como esse homem resolveu lidar com a tragédia, da qual também saiu afetado. As águas levaram seus investimentos de toda uma década, na forma de dois restaurantes em Porto Alegre aos quais agora só chegaria de barco. Diante do infortúnio, arregaçou as mangas. O ramo da gastronomia é sua segunda carreira, depois de anos no setor bancário. Ele sabe o significado de recomeçar.
Se trago aqui essa história, é apenas para dar um exemplo de como a fagulha que mora em cada um é importante para vencer desafios. Encontrar em si a coragem de recomeçar é o ponto de partida para lidar com as dificuldades, não importando seu tamanho. Vale para as questões que todo mundo experimenta mais cedo ou mais tarde e para as tão descomunais que não podemos nem imaginar o peso que teriam sobre nossas vidas cotidianas.
Diante de uma situação de estresse, a primeira reação é escolher entre “fight or flight” — lutar ou fugir. Mas às vezes, como diz o ditado, “se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come”. Em certas situações, o “bicho” é bem grande e não podemos nos limitar a essa resposta inicial e imediata. Só nos resta a inteligência para combatê-lo. Pessoas que se unem para um trabalho voluntário em uma grande tragédia, como as do exemplo do início do texto, encontram na ação uma forma de conforto também para si próprias. Mesmo extenuados, os que doam seu trabalho conseguem tirar da ajuda ao próximo uma nova visão sobre o momento no qual se veem colocados.
“Em certas ocasiões, porém, nos sentimos no último sopro para lidar com um imprevisto”
Em certas ocasiões, porém, nos sentimos no último sopro de recursos para lidar com um imprevisto. Não é raro não saber nem mesmo por onde começar. Nessas horas, tanto quanto possível, é preciso se colocar como um observador externo, refletir com a cabeça de quem não está preso no problema. Na série dinamarquesa Borgen, a personagem principal, Birgitte Nyborg, sempre pergunta ao seu conselheiro político, Bent Sejrø: “Quais são minhas opções?”. Quando ela tem de enfrentar dilemas e sem a presença do amigo, é obrigada a achar no seu íntimo a resposta que ele daria.
Enquanto escrevo este texto, alguém na vizinhança pode estar lidando com uma grande decepção, a perda de um ente querido, os primeiros dias de uma reinvenção profissional. Cada um, por si só ou com o auxílio de outras pessoas, contempla suas opções. Em etapas como essas, que nos obrigam à reconstrução, cada momento pode parecer longo demais. Nem sempre a página em branco tem o brilho excitante da novidade. Às vezes, ela só parece uma evocação do vazio.
Conforme o tempo avança, nossa perspectiva se ajusta, e mesmo grandes provações mudam de escala, ao se tornarem lembranças. O que parecia uma estação sombria talvez ganhe, no fio do tempo, a sensação de ter sido apenas um dia escuro. Como dizem os versos do poeta gaúcho Mario Quintana, que nos recordam a renovação constante da vida: “Nada jamais continua, tudo vai recomeçar!”.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894