Na calada da noite, alguém rompe uma vidraça. Pelo buraco aberto à força, um braço se estende e agarra um pão. Nessa cena crucial de Os Miseráveis, Victor Hugo mostra o desespero que leva um homem a roubar comida. O episódio marca a virada na vida do personagem Jean Valjean. Condenado por tentar alimentar a irmã e os sobrinhos, passa anos preso e, a partir dali, todo o enredo dessa obra-prima da literatura se constrói.
Seja no século XIX da ficção ou na realidade de hoje, a ausência de alimento define trajetórias. Embora pesquisadores, organizações sociais, voluntários e empresas se unam por essa causa, milhões ainda não podem escolher o que pôr no prato. E, se comer bem é um pilar da saúde, a fome é a porta de saída da cidadania. O alimento não apenas sustenta o corpo, ele constrói dignidade. Apesar disso, todos os dias, frutas e hortaliças menos vistosas perdem valor comercial, sendo muitas vezes descartadas. Mesmo se não atraem a vista, porém, elas seguem nutritivas. Resgatadas e distribuídas a quem precisa, tornam-se elos de inclusão social.
Esse é o cerne do trabalho da Associação Prato Cheio, com o projeto Rota Solidária. Pela minha história, sinto alegria especial em ver essa iniciativa ser reconhecida como a grande vencedora da segunda edição do Prêmio FGV de Responsabilidade Social. Os contemplados foram anunciados na última segunda-feira, 29. Para mim, foi uma honra integrar novamente o conselho presidido pelo ministro André Mendonça. Avaliar os projetos é sempre uma oportunidade de admirar a garra e a inventividade de quem enfrenta os desafios do país. E um dos mais urgentes é o desperdício alimentar.
“O tamanho do estrago: cerca de um terço da produção de comida no Brasil não chega à mesa”
Imagine comprar uma dúzia de ovos e, ao abrir a caixa em casa, encontrar apenas oito deles em bom estado. Não causaria revolta? Pois essa é, proporcionalmente, a perda de comida no Brasil: cerca de um terço da produção nunca chega à mesa.
Criada há quase 25 anos para enfrentar esse problema, a Associação Prato Cheio atua em sintonia fina com a ONU. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 12 prevê reduzir pela metade o desperdício de alimentos até 2030. Cada cesta recuperada aproxima essa meta da realidade, embora ainda nos reste longa estrada. Falando em metas globais, vivemos também a Década do Envelhecimento Saudável, da Organização Mundial da Saúde.
Nesse espírito, destaco outro projeto que me emocionou no prêmio: o Walking Football 60+, que recebeu menção honrosa ao promover uma modalidade adaptada do futebol para idosos e pessoas com mobilidade reduzida. No futebol convencional, um jogador percorre até 11 quilômetros em alta velocidade — esforço grande mesmo para um jovem em forma. No walking football, ninguém corre: todos caminham. O trabalho da WFB (Walking Football Brasil) usa o esporte mais popular do país como ferramenta contra a solidão. Já sabemos que a musculatura social é tão importante quanto a física para a longevidade. Com esse projeto, ambas são fortalecidas.
Longa vida, também, ao Prêmio FGV de Responsabilidade Social. Que siga revelando iniciativas em prol da saúde, da sustentabilidade, da arte e da cidadania, nutrindo assim nossa esperança em um futuro melhor.
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2025, edição nº 2964







