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Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo

Histórias de amor e assombro da autora chinesa que pode levar o Nobel

Lançamento marca a aguardada estreia da escritora Can Xue no Brasil. Sua tradutora expõe as peculiaridades e a potência de sua obra

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 6 out 2025, 17h00

Nos últimos anos, um nome encabeçava a bolsa de apostas para o Prêmio Nobel de Literatura: Can Xue. Pode ser que a escritora chinesa não o leve em 2025, uma vez que o comitê sueco concedeu a láurea em 2024 a uma conterrânea asiática, a sul-coreana Han Kang, e a tendência atual da academia tem sido alternar homens e mulheres, de origens e culturas diferentes.

Mas, com ou sem Nobel, vale a pena conhecer essa autora, que finalmente chega ao Brasil com a tradução de Verena Veludo Papacidero pela editora Fósforo. Histórias de Amor no Novo Milênio traz a prosa e os enredos peculiares de uma artista que esgarça as fronteiras entre o trivial e o absurdo no cotidiano – como se pudéssemos sair da realidade comezinha e penetrar um mundo dotado de outra lógica ao virar a esquina.

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Histórias de Amor no Novo Milênio, de Can Xue (Tradução: Verena Veludo Papacidero; Editora Fósforo; 400 páginas) (Capa: Fósforo/Reprodução)

Seu primeiro livro publicado no país entrelaça os encontros e desencontros de operários e operárias da vida, que podem trabalhar numa fábrica de sabão, num barco ou numa estância termal vendendo o próprio corpo. Toda essa gente que, como define uma das personagens, é “por natureza, um pouco louca”, louca para receber seu quinhão de liberdade, uma módica bênção do destino, moedas de prazer e felicidade.

Para desbravar quem é essa escritora comparada a Kafka, capaz de produzir encantos, desconfortos e assombros no leitor, nada melhor do que conversar com quem se embrenhou em sua obra, a tradutora.

Com a palavra, Verena Veludo Papacidero.

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O que a literatura de Can Xue tem de mais especial?
O que mais me impressiona na literatura de Can Xue é a sua força criativa, que vem de uma visão de mundo que coloca o ser humano como parte integral da natureza, um conceito muito próprio da cultura chinesa ancestral:  天人合一 tiānrén héyī (natureza e homem em unidade). Como a própria autora afirma, “a natureza exige que a humanidade realize e manifeste seus objetivos por meio da criatividade”. Então Can Xue realiza e manifesta suas obras por meio dessa força criadora da natureza.

Compartilho do ponto de vista de que a literatura de Can Xue é como uma performance que captura aspectos essenciais e universais da natureza humana e os revelam em seu máximo potencial. É um gesto carinhoso da autora para convidar o leitor a sair da posição de mero observador e participar de sua dança. Essa dimensão performática coloca seus personagens em situações extremas para testar até onde podem ir os desejos, os medos e as paixões humanas. E, na transcendência de suas narrativas, podemos ter uma experiência de presença, de movimento, de abertura para cenários oníricos, utópicos, que muitas vezes beiram o absurdo e, no entanto, propõem um mergulho nas sombras da consciência e a liberação das nossas emoções mais íntimas.

Daí a comparação com Kafka?
Ela é muitas vezes comparada a Kafka, de quem é uma ávida leitora e crítica. Mas Kafka não é o único autor que influencia sua escrita. Can Xue encontra em outros autores estrangeiros, como Borges, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Calvino, a inspiração para o seu trabalho. É também na comunhão da literatura e da cultura estrangeira com a tradição literária e cultural chinesa, sem o estabelecimento de uma hierarquia entre elas, que a autora cria obras experimentais bastante inovadoras, fundadas em premissas muito singulares que não se encaixam em categorias pré-definidas.

No livro recém-publicado, acompanhamos cenas banais do cotidiano entremeadas com episódios que ecoam o absurdo. Essa é a principal marca da escritora?
Talvez essa seja uma das chaves para compreender a singularidade de Can Xue. Em Histórias de Amor no Novo Milênio, acompanhamos situações da vida humana que aparentemente são triviais, uma conversa entre familiares, um encontro fortuito, um desejo secreto, até que nos deparamos com uma sensação de que tudo pode acontecer, até o inimaginável. O sonho e a realidade se misturam, prédios aparecem e desaparecem, personagens se perdem em labirintos ou passagens subterrâneas, o fantástico invade o enredo trazendo imagens de plantas que brotam de paredes, com os barulhos das raízes e dos animais logo embaixo da terra.

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E, assim, vamos encontrando um enigma dentro de outro enigma, e eles colocam tanto os personagens quanto o leitor em uma posição de deslumbramento diante do incompreensível. É como afirmou Long Sixiang, uma das personagens da obra: “Não entender, na verdade, é entender tudo”.

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A tradutora e pesquisadora Verena Veludo Papacidero (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

As mulheres são as grandes condutoras dessas histórias de deslumbramento, não?
Histórias de Amor no Novo Milênio possui uma grande força do feminino: as mulheres que surgem na narrativa são insaciáveis em sua busca por amor e liberdade, ao mesmo tempo em que revelam sua sensibilidade e resistência diante da opressão que permeia suas vidas. Elas estão rodeadas de uma trama de personagens masculinos: são seus familiares, seus amantes, mas podem ser policiais, médicos, antiquários, alunos… Eles entram e saem de cena, entrelaçam-se a elas e a outras figuras, e afetam-nas de uma forma muito significativa.

Can Xue é frequentemente cotada ao Prêmio Nobel de Literatura. Por que ela mereceria essa distinção?
Por ser uma das escritoras mais originais da literatura contemporânea. Sua obra é bastante prolífica, com mais de uma centena de contos, dezenas de romances e ensaios críticos publicados. Já recebeu premiações literárias importantes na China e no exterior, além de ter sido indicada ao Nobel de Literatura por vários anos consecutivos. A singularidade da sua obra faz dela uma voz universal. Embora seus escritos partam de contextos chineses, não se limitam a eles, muito pelo contrário, abrem-se a experiências e dramas humanos comuns a todos nós: a repressão dos desejos, a busca pela liberdade, o medo da solidão… E testam os limites da imaginação na medida em que oferecem ao leitor uma espécie de libertação criativa.

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Premiá-la seria reconhecer a grandeza de uma autora mulher e de origem chinesa, romper essas duas barreiras ainda presentes na lista dos laureados com o Nobel de Literatura, em grande parte homens e ocidentais. Significaria abrir um espaço para a pluralidade de vozes da literatura mundial, na qual a literatura chinesa está inserida, além de superar a questão de gênero, da diversidade cultural e linguística, e mostrar que a literatura se faz no encontro e na diferença.

Quão árduo foi traduzir Histórias de Amor no Novo Milênio?
Foi um processo intenso em vários aspectos e cheio de desafios. Primeiro, pelo fato de incluir o ofício da tradução em meio a outras atribuições profissionais. Além de tradutora de chinês-português, sou professora de chinês e pesquisadora de língua, literatura e poesia chinesa moderna e contemporânea, com doutorado em andamento. Em segundo lugar, a própria Can Xue já afirmou que o chinês é um idioma difícil de traduzir e eu, como aprendiz da língua há 20 anos, posso confirmar: é difícil mesmo. O chinês carrega significados enraizados em diversas camadas da linguagem, desde sua escrita logográfica, e em todas as suas dimensões fonológica, semântica, sintática, discursiva, estética, cultural.

Tudo isso torna a sua tradução para qualquer outro idioma uma tarefa inevitavelmente desafiadora. Contudo, nas palavras da autora, ainda que seja “extremamente difícil converter adequadamente uma língua para outra”, “todas as línguas do mundo são comunicáveis”. Foi com essa confiança que, em meio a perdas e danos da tradução, procurei recriar em português ao menos uma parte da profundidade linguística da escrita da autora.

Qual foi o maior desafio dessa empreitada ao longo de quase 400 páginas?
Essa foi uma das minhas primeiras traduções literárias no gênero romance. Até então, tinha experiência com textos de poesia e literatura infantil. Então foi um salto muito grande sair de textos mais curtos, mesmo com todas as complexidades que envolvem a tradução de poesia e literatura infantil, para lidar com um texto dessa densidade e extensão. E, como a sua prosa é extremamente ambígua e fragmentária, um dos grandes desafios foi preservar, o tanto quanto pude e dentro dos recursos de que eu dispunha no momento do ato tradutório, a estranheza produtiva do original sem transformar o texto de chegada em algo hermético demais para o leitor brasileiro.

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Quando encontrava dificuldades de compreensão, recorria às traduções já existentes em português de Portugal e em inglês. No entanto, muitas vezes me arrependia, ao perceber que essas versões traziam deformações ou vícios resultantes de escolhas domesticadoras, especialmente mediadas pelo inglês. Claro que senti a tentação de suavizar ou esclarecer determinadas passagens, mas percebi que isso significaria trair a própria essência da autora. Por isso, lutei para manter uma tradução direta, mais próxima do original, evitando a influência dessas traduções intermediárias, permitindo que o desconforto que marcou minha leitura também fosse sentido pelo leitor. Afinal, esse desconforto é vital em Can Xue.

Então foi uma tremenda experiência, que extravasou a própria tradução?
Minha prática tradutória se baseou em um processo de leitura e releitura atenta de cada frase e parágrafo do original em voz alta, seguida de uma tradução inicial em português e depois de sucessivas lapidações, também lidas e relidas na nossa língua. Ao concluir cada capítulo, fazia uma nova leitura do texto e as correções que julgava pertinentes antes do envio para a preparação. Depois dessa etapa, li novamente a obra inteira, aprovei as sugestões do preparador e segui para a revisão, em que ajustes adicionais foram feitos. Já nas provas finais, tive ainda a chance de reler o livro por completo e alinhar os últimos detalhes. Em todo esse percurso, contei com o apoio precioso da equipe editorial da Fósforo, à qual agradeço profundamente pelo carinho, respeito e cuidado com o meu trabalho e com a obra.

Traduzir Can Xue foi, acima de qualquer desafio, uma experiência transformadora, um exercício de escuta, de silêncio e de abertura para o desconhecido. Espero que o leitor brasileiro possa sentir, ao percorrer as páginas da obra em português, o mesmo misto de estranhamento e encantamento que acompanhou a minha leitura e tradução do chinês.

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