Para adiar o fim do mundo, é preciso resgatar nossa ligação umbilical com a Terra e cultivá-la numa relação de respeito e mutualismo, um ganha-ganha crítico à sobrevivência das espécies e do meio ambiente. Eis o chamado a ecoar nos 25 textos de Terra – Antologia Afro-Indígena, uma coedição da revista PISEAGRAMA e da editora Ubu.
A obra reúne pensamentos, memórias e experiências de lideranças e outras vozes ligadas a grupos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, reservas extrativistas e favelas que, com suas particularidades, evocam outra forma de enxergar a natureza e se (re)conectar com ela. Um jeito diferente daquele erigido pelo padrão ocidental com raízes coloniais, em que o capital revela sua face de predador ao consumir florestas, solos e águas – e ao encurralar ou expulsar povos que dependem desses ecossistemas.
O chamado bate à porta de qualquer cidadão da aldeia global, que já pena com as mudanças climáticas. E ganha uma fundamentação na teoria e na prática, nos mitos e nas lidas e lutas diárias, na poesia e na denúncia, nos textos de Antônio Bispo dos Santos (líder quilombola), Célia Xacriabá (professora e ativista do povo Xacriabá), Davi Kopenawa (xamã e líder yanomami), Entidade Maré (coletivo de artistas LGBT+do complexo da Maré, no Rio de Janeiro) e grande elenco.
A maioria dos ensaios foi publicada originalmente na PISEAGRAMA, que completa 13 anos com a proposta de trazer ao universo da escrita o que seus criadores chamam de “oralidades impressas”. São meios de transpor saberes e reflexões mantidos no discurso oral para as páginas da internet, das revistas e dos livros, questionando inclusive sua preponderância como plataforma única do conhecimento.
Rever a exploração e a destruição sistemática da natureza – algo alarmante no Brasil -, os limites do agronegócio, o preconceito e o desrespeito com as minorias (não só étnicas) e suas maneiras de lidar com a terra dão o tom da antologia, que, em seus rompantes ora ultrarrealistas ora utópicos, nos convidam a nos mexer para evitar um horizonte tragicamente distópico. O que une indígenas, quilombolas, ribeirinhos e companhia na empreitada é a noção de que a natureza não está lá fora… Somos parte dela.
Nesse sentido, o cuidado não se restringe à terra, às águas, às plantas e aos animais, como sintetiza um dos autores, Carlinhos da Reserva Extrativista (Resex) de Canavieiras, no sul da Bahia: “(…) Ressaltar o papel das comunidades na conservação do ambiente é uma luta árdua. Há uma grande disputa entre o setor que só vê o meio ambiente e não vê o ser humano que historicamente cuidou desse ambiente, que garantiu que existam hoje áreas conservadas, sejam elas em comunidades tradicionais, sejam elas em quilombos ou aldeias (…) A nossa relação com a natureza é de indissociabilidade”.
Temas urgentes não faltam à PISEAGRAMA. “Nascemos como uma revista dedicada a discutir os espaços públicos e as cidades e a crescente privatização e precarização da vida no âmbito urbano. A grande questão que se colocou para nós, no entanto, é que o modo de vida urbano não está mais restrito às cidades”, contam Fernanda Regaldo e Wellington Cançado, fundadores da publicação e co-organizadores do livro.
A próxima antologia da revista se chamará Contracidades. “Será dedicada exatamente à escuta dessas vozes que se erguem contra a cidade. Que, apesar da força avassaladora da urbanização e da imposição da cidade como único modo de vida legítimo, não se deixam domesticar e acabam inventando ‘contra-cidades’.”
Com a palavra, os organizadores de Terra – Antologia Afro-Indígena.
Terra - Antologia Afro-Indígena
No livro, fica evidente a presença de fios condutores: a preservação da terra, a condenação a uma cultura predatória, o pedido de respeito a tradições regionais… Mas queria ouvir dos organizadores: o que une todas as vozes representadas ali?
Nos parece que os fios condutores que você menciona estão entrelaçados por um outro fio que, digamos, costura todos eles: a noção de que os povos que mantêm uma conexão com a terra que não é de dominação e expropriação nos apontam formas de enfrentar os impasses ecológicos, sociais, políticos, éticos e climáticos do momento que estamos vivendo, o Antropoceno. O que une todas as vozes no livro é justamente essa possibilidade de nos fazer vislumbrar alternativas: outras formas de estar no mundo; outros mundos possíveis.
Outro aspecto importante é que a antologia não deixa de ser, de alguma forma, uma celebração dos 13 anos da revista PISEAGRAMA. Nesse sentido, vale apontar que a maioria dos textos já foi publicada na revista, e poderíamos dizer que esse é, também, um fio condutor. Durante todo esse tempo, a PISEAGRAMA tem aprimorado uma prática editorial que chamamos de oralidades impressas, que consiste em escrever os textos juntos aos autores, por meio de um processo de escuta e de edição conjunta de falas e conversas.
Trata-se, afinal, de autores cujos sistemas de conhecimento e cuja sabedoria não passam necessariamente pela escrita. Nosso papel, nesse sentido, é trazê-los para este universo, não só porque para eles é importante adentrar o mundo dos livros, perfurando os silêncios e deslocando as relações de poder que eles estabelecem, mas principalmente porque o que eles dizem precisa ser escutado e lido por nós com urgência.
Conceitos como agricultura regenerativa, que bebem de ensinamentos indígenas e quilombolas, começam a ganhar espaço no sistema agrícola mantido pela grande indústria. Acreditam que, com as mudanças climáticas batendo à porta, noções e lições de sustentabilidade desses povos serão mais ouvidas e seguidas?
Não tem sido muito fácil encontrar motivos para sermos otimistas. Em primeiro lugar, é preciso diferenciar aquilo que é puro greenwashing – e os departamentos de marketing das empresas estão cada vez mais competentes e despudorados em pinçar noções, lições e conceitos como aqueles que os indígenas e os quilombolas nos trazem – dos avanços reais na prática.
De qualquer forma, parece evidente que o sistema agrícola mantido pelo capital tende, sim, a se apropriar de alguns conhecimentos e técnicas desses povos. Uma parte do agro, afinal, vai se dando conta de que os mercados externos estão de olho e, sobretudo, de que entre os grupos mais impactados pela crise climática estarão justamente os produtores rurais. Talvez falte ainda a dimensão real de que vai ser preciso não somente manter as florestas de pé, mas realizar um reflorestamento massivo e em uma escala nunca vista no Brasil.
Além disso, será necessária uma grande transformação no imaginário para que finalmente possamos compreender, como sociedade, que a própria floresta é o modo mais eficiente de manejar a diversidade biocultural e de produzir comida em abundância. E que indígenas, quilombolas, ribeirinhos e demais habitantes das florestas são os principais detentores dos conhecimentos e das técnicas de fazer florestas. Isso vai demandar uma mudança de paradigma profunda, já que o arruinamento das florestas para a implantação de monoculturas é fundante do Brasil.
O projeto do agronegócio como motor da economia nacional hoje reitera um modelo predatório exportador de primarização econômica e desterramento dos povos originários e tradicionais. E ainda que comecem a emergir no país modelos agroflorestais e orgânicos com o discurso de regenerar o planeta e liderar “a Revolução Verde do século 21” em fazendas dominadas por máquinas autônomas e de alta precisão, o que as ciências indígenas e quilombolas nos ensinam é que a terra não é mercadoria e que a desconexão dos humanos com a terra não é natural, mas um projeto da modernidade ocidental, que esses modelos não somente reafirmam como também pretendem acelerar. Isso é evidente não apenas no que diz respeito às práticas agrícolas, mas também em boa parte de iniciativas ditas “verdes”, como os novos sistemas de produção de energia.
A virada, afinal, precisa ser uma virada ética e, ao mesmo tempo, cosmológica, no sentido de superar a crença moderna da natureza como externa aos humanos e sempre pronta a ser dominada e domesticada – em direção a uma visão sistêmica, que estabeleça com a terra outras relações: de parentesco, de cuidado, de coexistência.
O livro aborda diversas vezes questões que extrapolam a dimensão étnica, ambiental e social, trazendo à tona desafios ligados ao gênero e às dores do público LGBT+, por exemplo. Em que medida essas lutas convergem, se reforçam e se apoiam para atingir seus objetivos?
Uma boa parte da luta dos grupos LGBT+ passa pela busca por uma reconexão com o corpo que escape da normatividade do patriarcado – basicamente, da mesma lógica de dominação e colonização que configurou o mundo ocidental do capital. Não é à toa que as reivindicações dos povos indígenas e quilombolas, das mulheres, dos favelados e do público LGBT+ convergem tanto.
Tampouco é à toa que aparecem, nos textos escritos por pessoas ou grupos LGBT+ no livro, referências a modelos utópicos de futuro em que o reenvolvimento com a terra e com os saberes tradicionais (sempre diminuídos, explorados, estigmatizados) é central. A violência sofrida historicamente por esses sujeitos e por seus corpos é a mesma violência de um modelo que objetifica o outro e a terra (ou aquilo que aprendemos a chamar de Natureza).
A cultura de predação que configurou a experiência colonial e a formação do sistema produtivo nacional é a mesma que rege o mandonismo e o privatismo nos sistemas político e social. Trata-se também da mesma cultura que justificou a escravização de povos originários e de pessoas pretas; da mesma cultura que fundou no país a mestiçagem por meio do estupro, e que sempre subjugou os corpos das mulheres por meio das mais variadas formas de violência. E que, em última instância, estabelece quem tem ou não legitimidade para estar nas páginas de livros, nas estantes das bibliotecas, nas bibliografias das universidades. Essas coisas não estão dissociadas.