A impressão é que convivem três figuras num sujeito só – ou, mais apropriadamente, ele conjuga três facetas um tanto diferentes. Primeiro, o pesquisador que revolucionou a linguística propondo que a linguagem é uma capacidade biológica e inata do ser humano. Segundo, o intelectual que analisou como o Estado, as elites e o establishment conspiram em busca de consenso e domínio político e econômico. Terceiro, o cidadão que bota a boca no trombone e vai a ruas e lives se manifestar contra os movimentos, conflitos e interesses “imperialistas”.
Esse é Noam Chomsky, filósofo e linguista de 95 anos, recém-saído de uma passagem pelo hospital em São Paulo, com direito à visita de Lula, e o autor dos textos reunidos em O Essencial Chomsky, traduzido e publicado há pouco pelo selo Crítica da Editora Planeta.
A antologia é organizada pelo editor e documentarista Anthony Arnove e colige artigos, discursos, prefácios e capítulos de livros que marcaram a vida e a obra do pensador americano.
Em mais de 600 páginas, os 25 textos abrangem as três facetas do intelectual, desde o contraponto ao modelo behaviorista de B. F. Skinner e a proposta de um novo modelo de entendimento da linguagem humana até a crítica contra o imperialismo americano e seus aliados históricos, como Grã-Bretanha e Israel, materializado em eventos como a Guerra do Vietnã, as crises no Oriente Médio e o conflito entre israelenses e palestinos.
Chomsky é daqueles raros intelectuais que pularam o muro da universidade e se manifestaram publicamente contra autoridades e magnatas – chegou a ser detido em um protesto contra a invasão americana do Vietnã.
Persona non grata para figuras do governo e da elite de seu próprio país, com críticas tanto a administrações republicanas como democratas, seus textos, influências e discípulos ainda se fazem ouvir e sentir. Por vezes cercados de polêmicas, especialmente na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando rotulou os Estados Unidos como “terroristas” e corresponsáveis pelas tragédias no Oriente e no Ocidente.
Do seu legado, uma das principais causas a ecoar – atrelada à da autonomia das nações – é o clamor por transformações políticas capazes de desenhar um mundo menos desigual. “Sua porta sempre esteve aberta a qualquer um que queira dialogar, aprender e explorar mudanças”, afirma Arnove.
Quem quiser beber da fonte – um aperitivo para suas outras obras, umas mais densas, outras mais palatáveis ao leigo -, ainda que não venha a concordar com as teses e opiniões do filósofo, terá essa oportunidade em mãos com O Essencial Chomsky.
Com a palavra, o organizador do livro.
Por que Noam Chomsky é um intelectual tão singular?
Em sua vida e obra, Noam Chomsky combina, de forma única, compromisso político, curiosidade intelectual, métodos científicos de investigação e solidariedade. Para alguém engajado em um trabalho de mudança de campo na linguística e na filosofia, é notável vê-lo sustentar simultaneamente uma atividade rigorosa no ensino, na escrita e no suporte a organizações dedicadas à justiça e à transformação social. Sua porta sempre esteve aberta a qualquer um que queira dialogar, aprender e explorar mudanças políticas. Ele inspirou inúmeras pessoas globalmente com a sua dedicação à construção de um mundo que permita a cada um de nós desenvolver todas as suas capacidades criativas.
Qual seria a grande contribuição de Chomsky para a ciência da linguagem?
Na década de 1950, Noam Chomsky transformou radicalmente a forma como entendemos a linguagem ao mostrar como ela é uma capacidade biológica, uma faculdade, em contraposição ao modelo behaviorista dominante de linguagem articulado por B. F. Skinner e outros estudiosos. As pessoas concentram-se, com razão, nos seus primeiros trabalhos que revolucionaram o campo da linguística, mas é importante notar que ele continuou desenvolvendo suas teorias com base em novas pesquisas e conhecimentos gerados pelas suas investigações e por outros cientistas, como vemos no seu livro O Programa Minimalista.
O que podemos aprender com Chomsky sobre esta era de domínio de Big Techs, inteligência artificial e guerras reais?
A teoria política de Noam Chomsky oferece insights profundos sobre os novos desafios da nossa era porque todos eles permanecem enraizados nos primeiros sistemas de poder que ele passou décadas estudando e tentando desmantelar, seja por meio de sua análise fundamental sobre como as corporações de mídia e outras instituições do establishment trabalham para “fabricar o consenso”, seja pela sua desconstrução rigorosa das razões pelas quais alguns Estados procuram dominar os outros, controlar os mercados e maximizar o lucro para as elites, seja pela avaliação de como a tecnologia é implantada para limitar, em vez de expandir, a liberdade humana, apesar de tanta retórica em contrário.
Noam nos ajuda a enxergar além da superfície desses dilemas para compreender os reais interesses e poderes em jogo, mas, mais importante ainda, o poder que temos coletivamente para resistir e moldar um futuro diferente.