O antídoto contra o trauma e a indiferença de Han Kang
Prêmio Nobel de 2024 destrincha eventos que marcaram vidas, famílias e a história de um país - e ganha o mundo na onda de interesse pela cultura sul-coreana

Com música, cinema, telenovelas e livros, a Coreia do Sul conquistou o planeta neste ano. E a coroação, não em termos de popularidade, mas de relevância cultural, certamente veio com o Prêmio Nobel de Literatura concedido a escritora Han Kang, entregue na tradicional cerimônia realizada em Estocolmo na última semana.
As vendas de suas obras decolaram pelo mundo – eis o efeito Nobel – e sem dúvida mais leitores brasileiros terão a oportunidade de conhecer uma autora que eviscera traumas individuais, familiares e sociais, sobre os quais exerce um tratamento poeticamente cirúrgico.
Numa prosa que muda na forma, mas não na essência, a sul-coreana ganhou fama com o best-seller A Vegetariana, que parte dos conflitos internos e coletivos que uma decisão alimentar acarreta, reviveu um capítulo chocante da história de seu país – um massacre com milhares de mortos perpetrado pelo Exército como reação a uma revolta estudantil – em Atos Humanos, e processou o luto de sua mãe ao perder uma filha precocemente, bem como o impacto desse episódio em sua própria vida, em O Livro Branco, todos publicados pela Todavia no Brasil.
Para Natália Okabayashi, responsável pela tradução de O Livro Branco e do próximo romance da autora a ser lançado por aqui em 2025, Kang nos incita, com sua lente de aumento e olhar sensível, a fugir da indiferença e a evitar o silenciamento da memória.
É motivo suficiente para lermos a autora, inclusive como sociedade. E descobrir essa Coreia do Sul que exporta atrações, ao mesmo tempo que, como revelou um recente rompante autoritário de seu presidente em processo de impeachment, ainda tem de lidar com suas fraturas ocultas e expostas.
Com a palavra, a tradutora da prêmio Nobel.
Os traumas, individuais e coletivos… Estaria aí o grande tema da obra de Han Kang?
Concordo que os traumas são muito presentes na obra de Han Kang, mas particularmente penso que, mais do que eles, o ponto central é o olhar sensível sobre o mundo. Ela retoma eventos históricos e questões individuais com uma lente de aumento, como se nos fizesse olhá-los com mais atenção e mais profundidade. Talvez, de certa forma, nos lembrando de exercer a humanidade que existe em nós, fugindo da indiferença.
Em Atos Humanos e We do not part [ainda sem edição no Brasil], acho que é mais clara essa associação porque ela fala em eventos históricos. No caso de a A Vegetariana, acompanhamos de perto os processos internos de Yeong-hye quanto a não querer mais comer carne e a tentar se libertar de certas amarras (sociais, físicas…), enquanto pessoas próximas simplesmente não demonstram querer entender aquilo que está por trás de suas posturas.
Quais as particularidades e os desafios ao verter a autora para o português?
Eu tive a oportunidade de traduzir dois livros da Han Kang, e, embora sejam dois textos bastante diferentes entre si, existem pontos que refletem uma identidade clara da escrita da autora. Ela aborda temas densos, e seu texto é sempre permeado de muita poesia. Han Kang também cria muitas imagens que, na minha opinião, entram bastante no campo do sentir. Acho que fazer o exercício de trazer esses efeitos para o português é desafiador.
Na sua visão como leitora e tradutora, por que Han Kang faz jus ao Prêmio Nobel? Acredita que esse marco nos abrirá ainda mais à literatura coreana?
Acredito que Han Kang é uma autora muito sensível, artística e versátil. Podemos notar que sua obra é bastante diversa, seus livros são muito distintos entre si, mas ainda assim mantêm uma identidade clara. Isso não é algo que se vê com tanta frequência. Além disso, como ela traz na escrita esse olhar profundo e a memória, acredito que ela é muito relevante para a atualidade.
Usando um exemplo da Coreia do Sul, temos o episódio recente do presidente Yoon Suk Yeol declarar lei marcial, em uma tentativa de golpe. Em Atos Humanos ela aborda os horrores causados pela ditadura militar. É fundamental ter essa memória viva para refletirmos e não deixarmos que, como sociedade, sigamos por caminhos com consequências trágicas.
Também penso que o interesse pela Coreia do Sul tem crescido nos últimos anos, impulsionado pela Hallyu (onda coreana). Então já temos muitas pessoas interessadas pelo k-pop e k-dramas, por exemplo. Parece natural a expansão do interesse a outras esferas, como a literatura. Acredito que foi com esse fenômeno que muitos puderam descobrir a obra de Han Kang. Certamente a premiação é um marco relevante para aumentar ainda mais esse contato com a literatura coreana. Assim espero.