“Os assassinos quiseram apagar até suas lembranças, mas no caderno escolar que nunca me deixa, registro seus nomes, e não tenho pelos meus e por todos aqueles que pereceram nada além desse túmulo de papel”. É assim que Scholastique Mukasonga, uma das vozes mais aclamadas da literatura atual, encerra o livro Baratas, em que narra o extermínio de dezenas de parentes (entre eles, pai, mãe, irmãos, sobrinhos…) e de inúmeros conterrâneos no doloroso genocídio de Ruanda, que completou 30 anos em 2024.
As “baratas” do título evocam a maneira como a maioria étnica do país, os hutus, se referiam à minoria tutsi, atacada cruelmente em cidades e vilarejos, numa onda colérica e impiedosa que resultou em estupros, torturas e homicídios à luz do sol impostos a quase 1 milhão de pessoas — incluindo bebês na barriga das mães.
Mukasonga, hoje aos 67 anos, escapou desse destino emigrando para o país vizinho, o Burundi, sob as instruções dos pais e, depois, para a França, onde reside até hoje. Dedica sua vida e obra a conservar a memória da família e de um povo destruído — afinal, a história não pode ser esquecida nem repetida.
Com obras traduzidas para cerca de 30 idiomas e cotada a um Prêmio Nobel, a autora lançou neste ano no Brasil seu romance Kibogo Subiu Ao Céu, pela Editora Nós, que ainda reuniu os livros Baratas, A Mulher de Pés Descalços e Nossa Senhora do Nilo em um box da trilogia sobre o genocídio. Em 2025, deverá sair Julienne.
A trilogia do genocídio de Ruanda
Com a palavra, Scholastique Mukasonga.
Túmulos de papel resistem mais à ação do tempo e dos homens do que as sepulturas de pedra?
Para as vítimas de um genocídio, não existe túmulo de pedra. Seus restos mortais são enterrados em valas comuns e seus esqueletos expostos em ossários. Crânios sobre crânios, ossos sobre ossos… Como reconhecer seus familiares? Eles permanecem apenas na memória de quem escapa e sobrevive. Mas essa memória é frágil, vigiada pela loucura ou pelo esquecimento. Só a palavra escrita, e melhor ainda sob a forma dos livros, pode garantir certa resistência ao tempo e transmitir os erros do passado às gerações futuras, na esperança de que aprendam com eles e não os repitam.
Ruanda continua sendo o “país da Morte”, como diz uma personagem de seu romance Nossa Senhora do Nilo?
Trinta anos depois do genocídio dos tutsi, acredito que o sol nasceu novamente em Ruanda. A imprensa tem frequentemente descrito esse renascimento como o “milagre ruandês”. E o primeiro milagre foi justamente pôr fim ao genocídio, mesmo diante da indiferença do mundo inteiro e da evidente hostilidade de alguns países. Era necessário restaurar a paz e a segurança em poucos anos para construir uma nova nação baseada numa justiça que dá voz tanto às vítimas quanto aos assassinos. A reconciliação defendida pelo governo não se pautou nem pela vingança nem pelo esquecimento, mas pela consciência lúcida de um passado que não deve pesar no futuro.
Essa transformação já é sentida pela sociedade ruandesa?
Os economistas descrevem assiduamente os sucessos de Ruanda, como a taxa de 90% de escolaridade até os 16 anos, o seguro de saúde para 80% da população, o fato de ter se tornado um país high-tech e um destino turístico que virou tendência…. E os sociólogos não deixam de enfatizar o lugar eminente ocupado pelas mulheres em todos esses campos. Em Ruanda já não há mais slogans políticos nem retratos do presidente em cada esquina, mas sim o apreço baseado em um termo que cristaliza a vontade e a expectativa de todos os cidadãos pelo renascimento do país: agaciro.
Qual o significado?
Se pudermos traduzir essa palavra como “dignidade”, o termo implica muitos valores, como o orgulho de nos encontrarmos unidos no esforço comum para reconstruir uma nação maltratada, que precisou contar primeiro consigo mesma enquanto abria as fronteiras de um Estado reduzido a mero gueto de colonizadores e missionários europeus. Implica, ainda, um esforço para nos reconectarmos com uma história um dia falsificada pelas fantasias de uma antropologia racista.
Quando vê notícias de outras populações sendo exterminadas hoje, o que lhe vem à cabeça?
Essa é uma das minhas missões como escritora, e já traduzida para cerca de trinta idiomas, felizmente: divulgar o genocídio sofrido pelos tutsis, com mais de 1 milhão de mortes em 100 dias. O termo é constantemente utilizado em excesso e confundido com as guerras em si. Devemos sempre voltar à definição dada pelo procurador Raphaël Lemkin [advogado judeu e polonês que criou o termo “genocídio”]: ela envolve “a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico ou religioso.” O genocídio, portanto, tem a intenção de um extermínio total e não irrompe espontaneamente. É, na verdade, o resultado de uma ideologia inculcada entre as pessoas há muito tempo e de um programa de assassinatos desenvolvido com método.
Seu próprio nome revela a confluência histórica e cultural de Ruanda. Hoje a senhora se considera mais Scholastique ou Mukasonga?
Mukasonga é o meu nome: foi aquele que meu pai me deu. Não existe nome de família de acordo com a tradição ruandesa. É o pai quem dá um nome a cada um dos filhos de acordo com as circunstâncias ou o estado de espírito no nascimento. O meu é composto pelo prefixo muka, reservado ao nome da menina. Já songa pode significar “de novo”, como se meu pai, um pouco decepcionado, exclamasse: “Nasceu outra menina!” Mas songa também quer dizer “cume”, o que significa que meu pai pode ter ficado encantado com o meu nascimento. Opto obviamente por esse segundo significado. Já Scholastique é o nome que o missionário europeu me deu em meu batismo. Na França, ele caiu em desuso, mas ainda suscita curiosidade.
O Brasil é reconhecido (e já foi até louvado) como a terra da miscigenação, o fruto louvável e bonito de muitas misturas étnicas. Pensando na trajetória do seu país, como enxerga o nosso?
Ruanda foi poupada da escravidão, quer ela viesse do Atlântico ou do Oceano Índico. Os grupos que formavam sua população — os tutsi, os hutu e os twa — eram divididos pelo seu papel econômico: criadores de gado, agricultores, oleiros, caçadores… Depois eles foram classificados pela antropologia ocidental em termos de grupos étnicos ou raças. O Brasil, por sua vez, está na confluência de múltiplas culturas. A parte africana desempenha papel importante, apesar do doloroso legado da escravidão. Como me disse o presidente Lula em 2018: “O Atlântico é só um riacho entre o Brasil e a África”. Então me atrevo a dizer que eu gostaria de ser uma passarela sobre esse riacho.
Em Baratas, a senhora escreve que, na infância, seu sonho era ter ao menos um livro para chamar de seu. Hoje, com uma obra literária reconhecida e até cotada ao Prêmio Nobel, que legado espera deixar para o mundo?
Tenho dito e escrito muitas vezes: “Foi o genocídio dos tutsis em Ruanda entre abril e junho de 1994 que me fez escritora”. Porém, nada na vida me preparou para me tornar uma escritora. Claro, eu falava e escrevia em francês e, se fui escolhida para o exílio, foi porque meus pais entendiam que falar francês era uma espécie de passaporte internacional. Na escola secundária em que estudei, o Liceu Notre-Dame de Cîteaux [em Kigali, capital de Ruanda], o francês era obrigatório. Mas o idioma que os voluntários belgas e franceses nos ensinavam não tinha qualquer ligação com a literatura. Nunca ouvi nomes de grandes escritores africanos de expressão francesa lá. Não me lembro da existência de uma biblioteca nesse colégio, que era destinado à formação da elite feminina do país.
Então não sofri nenhuma influência literária antes de escrever meu primeiro livro. Só mais tarde descobri obras dedicadas à Shoah, o Holocausto judeu durante a II Guerra Mundial, como as de Elie Wiesel [escritor judeu de origem romena, sobrevivente dos campos de concentração nazistas e vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1986] e Primo Levi [escritor judeu italiano, também sobrevivente da invasão e dos campos mantidos pelo exército alemão na II Guerra]. Elas reforçaram minha decisão de persistir na escrita.
E assim, além de assistente social, área na qual se formou e atuou, inclusive na França, a senhora se estabeleceu como escritora?
Reivindico o título de contadora de histórias, não o de escritora. Se tenho algum talento para isso, devo à minha mãe, Stéfania, que todas as noites embalava as minhas vigílias e as dos meus irmãos com seus contos. Muitas vezes, repito para mim mesma o provérbio com o qual ela encerrava seus relatos: “Aquele ou aquela que conta uma história não tem ódio no coração.”
Fora essa herança familiar em seu projeto literário, qual tem sido o principal estímulo para continuar a escrever seus livros?
Faço minhas as palavras de Elie Wiesel em sua obra A Noite: “Para o sobrevivente que se quer testemunha, o problema é simples: seu dever é depor tanto para os mortos quanto para os vivos e, acima de tudo, para as gerações futuras. Não temos o direito de privá-las de um passado que pertence à memória comum. O esquecimento significaria perigo e insulto. Esquecer os mortos seria matá-los pela segunda vez. E muito embora, com exceção dos assassinos e seus cúmplices, ninguém seja responsável por sua primeira morte, todos o somos pela segunda”.
O escritor colombiano e Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Máquez (1927-2014) intitulou sua autobiografia Viver para Contar. A história de Scholastique Mukasonga poderia ser batizada de “Sobreviver para contar”?
Inúmeras vezes, dei como título às minhas intervenções “Sobreviver para testemunhar, testemunhar para sobreviver”. Não escapei ao genocídio
propriamente dito, pois não estava em Ruanda em 1994. Sou outro tipo de sobrevivente. Foi uma escolha dos meus pais me enviar para o Burundi [país vizinho ao sul de Ruanda] para me tornar a sua memória quando chegasse a hora da morte deles. Em 1973, cerca de 20 anos antes do genocídio em si, eu já era uma sobrevivente [os ataques estruturados dos hutus contra os tutsis começaram a partir da década de 1960]. Eu já tinha como missão servir como a memória dos meus entes queridos.