‘Uma boa vida não basta – é preciso morrer de modo digno’
Livro de Adriano Silva acompanha brasileira que, diante de quadro debilitante, viaja para fazer um procedimento de morte voluntária assistida. Leia trecho

Sempre que uma morte acontece, somos lembrados de que a vida acaba. Todos morreremos. As pessoas que você mais ama morrerão. Você também vai morrer. Para qualquer ser vivo, a morte é um evento inevitável.
A morte não é o avesso da vida – ela é o seu final. O oposto de morrer não é viver, mas nascer. Já no nascimento você começa a trilhar o caminho que o conduzirá ao falecimento – o tempo que houver entre esses dois instantes é o que chamamos de vida.
A consciência da própria extinção é uma das características que nos torna humanos. Só em nossa espécie os indivíduos sabem que seus dias estão contados. Trata-se de uma clarividência terrível. Diante desse veredito incontornável sobre a brevidade atroz da nossa existência, Albert Camus cunhou sua famosa frase: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”.
Eis o questionamento ontológico: por que continuar existindo se vamos deixar de existir a qualquer momento?
Diante desse imperativo biológico, e desse impasse existencial, a única decisão possível, se tanto, para cada um de nós, frente à nossa própria finitude, é como queremos viver – e como desejamos morrer. Esse é o único controle que podemos ter sobre a fortuidade da existência humana – nos colocarmos como sujeitos ativos, e não como objetos passivos, daquilo que nos acontece.
De um lado, é preciso viver a melhor vida possível. Experimentar prazeres, viver alegrias, espalhar sorrisos, criar e compartilhar o maior número possível de momentos felizes. Talvez esse seja o único sentido da vida humana: viver bem, consigo mesmo e com os outros, pelo tempo que der.
Da mesma forma, também é fundamental morrer bem, evitando todo sofrimento que for possível evitar. Uma boa vida não basta – é preciso morrer de modo digno. Se a morte é parte da vida, então qualidade de vida inclui também qualidade na morte. Quando viver se transforma num exercício constante de agonia e desespero, deixar de existir pode representar a única libertação possível de uma rotina excruciante em que só há dor e infelicidade.
Muito mais absurda do que a brevidade da vida humana é a sua continuação em condições precárias e inaceitáveis, depois que todos os limites que o indivíduo considera suportáveis foram ultrapassados.
Infelizmente, há situações em que a vida termina antes de a morte acontecer. Em que a pessoa deixa de ser ela mesma – mas continua existindo. Em que seguir vivendo é um suplício. Ou seja: a morte não é a pior coisa que pode nos acontecer. Há cenários que são piores do que a morte. O nome disso é inferno.
Para o indivíduo, isso significa ser torturado diariamente – por uma doença incurável ou por uma incapacitação irreversível. Para a família, trata-se do pior luto possível. Porque ele não acontece depois que a pessoa “descansou”, mas, ao contrário, ocorre enquanto a pessoa que amamos segue sendo seviciada, dia após dia, por uma enfermidade (e, muitas vezes, pelos efeitos devastadores de um tratamento agressivo), sem que possamos fazer nada para ajudá-la.
Diante da perspectiva da morte como um filme de terror que acontece em câmera lenta, com cenas de enorme crueldade, e que se prolonga indefinidamente, num lugar lúgubre, onde não há conforto possível, só nos resta torcer para sermos agraciados com a chamada “boa morte” – um evento rápido e indolor.
E na impossibilidade de que isso venha a nos acontecer naturalmente, que possamos viver em um lugar em que o acesso à morte voluntária assistida (MVA) nos seja garantido, em caso de necessidade.
A ideia central do direito à autodeterminação do indivíduo é simples: ninguém pode ser obrigado a viver contra a própria vontade. Ponto.
Antes de questionarmos o direito de um indivíduo de acabar com sua própria vida, deveríamos questionar que direito temos nós de proibir uma pessoa de ir embora, se for esse o seu desejo.
Mesmo com algumas diferenças entre as legislações, nas sociedades que já se posicionaram a favor da autodeterminação, esse é o conceito que sustenta a visão da morte com dignidade como um direito civil inalienável.
* Adriano Silva é jornalista, ex-diretor da SUPERINTERESSANTE, da Editora Abril, ex-chefe de redação do Fantástico, da TV Globo, e autor de O dia em que Eva decidiu morrer, a ser lançado pela Editora Vestígio