A lição do Titanic: a medicina brasileira pode naufragar?
Colunista compara explosão de faculdades de medicina sem a devida qualificação com a tragédia do famoso navio

Nosso grande navio não começou a ser construído em Belfast (Irlanda do Norte), mas em Bolonha, na Itália, local da primeira faculdade de medicina. Demorou séculos até configurarem um modelo de embarcação capaz de navegar em todos os países de forma estável e segura. No início, nem todos os passageiros eram tão privilegiados para conseguir fazer uma viagem, como a do famoso Titanic.
No convés, salas de aulas bem distribuídas, enfermarias, centro cirúrgicos e um salão onde se disseca e se estuda a perfeição dos corpos. Na sala de máquinas, laboratórios completos onde se estudam células, órgãos, ossos e todo o mecanismo fisiológico do barco chamado corpo humano. Cada setor possui um oficial responsável nomeado professor e, quanto mais apurada a matéria, mais graduado é esse oficial.
Do século XI, mais precisamente de 1008 para cá, quase nada mudou nessa arquitetura de ensino. O tempo só foi atualizando os sistemas de navegação. No Brasil, nosso primeiro estaleiro começou a funcionar na Bahia, 800 anos depois, e por lá meu bisavô se formou dando origem à tradição de médicos na minha família.
A criação do navio da universidade da medicina envolveu uma enorme engenharia: era preciso concentrar uma profissão com tantas variáveis em um mesmo casco. Como o filme mostra, ela foi dividida em vários compartimentos, ou melhor, especialidades. Imaginava-se ser fundamental que o estudante e futuro médico, ao ser confrontado pelos questionamentos da profissão no isolamento do alto mar, soubesse resolver e salvar as vidas a bordo.
Anos de construção, discussões e aprendizados. Noites sem dormir, fins de semana de dedicação. Tudo com o objetivo de criar algo sólido e que não levasse riscos às vidas que seriam carregadas, assim como na impactante história de Hollywood.
A expectativa sobre um projeto tão bem bolado e executado, em que se dedicou anos na sua formação, é que ele seja algo extremamente seguro e que as pessoas não corram risco de vida. Por séculos, o cuidado no detalhe dessa construção foi muito criterioso, difícil e cuidadoso, mas agora um Iceberg chamado “Novas Universidades” se desprendeu das geleiras da ganância e ameaçam as vidas de quem antes navegava em águas calmas e em transatlânticos preparados para as adversidades.
Construir um navio para a medicina nunca foi algo fácil, e isso é sabido por todos. Não envolve só prédios bonitos, com telas de computadores e ambientes refrigerados e, sim, uma responsabilidade enorme no saber. É inevitável que a divulgação pelas redes de um estilo de vida glamouroso tem levado muitos jovens a se imaginarem como na primeira classe do Titanic, com joias, ternos, bolsas caras e serviçais.
Em um mundo rápido e imediatista, jovens acham que ser médico, a qualquer custo, é a melhor opção. Nesse navio, eu diria canoa, temos ChatGPT, Google e pouquíssimos oficiais, quer dizer, professores, até porque, não temos quantidade suficiente para cuidar dessa frota que está à deriva em alto mar.
Examinar, pensar e discutir parecem tarefas distantes quando um dia já foram fundamentais. Assim como em qualquer profissão, alcançar objetivos financeiros e até algum glamour (para quem gosta) envolve dedicação e esforço de quem se dispõe a atravessar um oceano, na maior parte das vezes bem turbulento.
Mas a sociedade também erra ao não valorizar esses profissionais. Médicos já formados, ao ingressarem em uma residência médica, recebem salário de marinheiro e não de oficiais e, por anos, limpam convés com um soldo que não dá possibilidade de viverem com dignidade. A fuga para empregos que remunerem melhor e não os faça ter que ficar embarcado integralmente é inevitável.
É perturbador saber que, diferentemente da época do Titanic, temos informações suficientes de que esses icebergs estão vindo em nossa direção. Porém, o mar de dinheiro controla o nosso navegar. E o destino desse navio, assim como na famosa história, poderá ser inevitavelmente a perda de milhares, talvez milhões, de vidas.