A verdadeira face do imposto seletivo
O novo tributo retira a seletividade de cena e trás, como referência de incidência, o critério da nocividade do bem ou serviço à saúde ou ao meio ambiente
No artigo da semana passada, eu evoquei O Alienista para falar das loucuras em torno da Reforma Tributária. Logo no início, arrisquei um palpite e lancei que esse talvez seja o melhor texto de Machado de Assis. A opinião rendeu diálogos entre mim e o redator-chefe de economia da VEJA, que gerencia esta coluna. Ele prefere Memórias Póstumas de Brás Cubas, diga-se, aliás, com muita razão porque é mesmo formidável. Ao final, meu editor venceu o embate por knock out: logo no dia seguinte, veio a notícia de que o livro bateu recorde de vendas após uma influencer americana divulgar a sua resenha sobre a obra, dizendo-a a melhor de todos os tempos.
Na história, Brás Cubas está morto, ele é o “defunto-autor” e dedica as memórias “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”. Parece fazer sentido trazer Memórias Póstumas como mote do ensaio desta semana porque, tal como a pneumonia matou Brás Cubas, a Reforma Tributária vem contabilizando cadáveres. O de hoje é o da coerência, que nos deixou ao não resistir ao teste do Imposto Seletivo.
Para rememorar, no início de abril eu fiz algumas linhas de comentários ao imposto. Na ocasião, o governo ainda não havia enviado a sua proposta de regulamentação e a única referência que se tinha era o Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 29/2024, apresentado à Câmara dos Deputados por um grupo de parlamentares. Agora existem novidades. Primeiro, por via do PLP n. 68/2024, o governo apresentou sua visão “oficial” em torno do formato do imposto e como ele deve vigorar no futuro. A segunda novidade está nas notícias que circulam a respeito das estimativas de arrecadação do Imposto Seletivo sobre a mineração, que diz muito sobre as reais intenções do governo com a nova exação, não só em relação a esse determinado setor, mas também sobre todas as atividades que estão na mira do novo tributo.
As balizas do Imposto Seletivo são diferentes das regras que dão parâmetros ao IPI e ao ICMS de hoje. Para eles vigora o princípio da seletividade, pelo qual certos produtos e serviços devem ser gravados com maior ou menor peso fiscal, a depender de sua essencialidade à sociedade. Mas o Imposto Seletivo retirou – pasme-se — a seletividade de cena e trouxe, como referência de incidência, o critério da nocividade de dado bem ou serviço à saúde ou ao meio ambiente. A eleição daquilo que o governo considera nocivo ficou por conta do PLP n. 68/2024, que submeteu ao novo imposto veículos, embarcações, aeronaves, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e extração de bens minerais.
O texto cria uma “porta de saída” para os fabricantes de veículos ao permitir que a alíquota do imposto seja reduzida, ou até mesmo zerada, caso sejam cumpridos certos critérios em torno da potência do veículo, sua eficiência energética, índices de emissão de carbono e outras metas de sustentabilidade ambiental. Mas as demais atividades listadas não contaram com o mesmo beneplácito e isso gera indagações: o propósito do governo é engordar a arrecadação, ou utilizá-lo como ferramenta de combate aos produtos e serviços noviços à saúde ou ao meio ambiente?
Seria esperado que a resposta fosse a segunda. Já é sabido que o comportamento dos agentes econômicos e a sua influência no jogo da oferta e da demanda pode não ser movido por escolhas racionais. Os adeptos da economia comportamental defendem que certos modelos econômicos falham ao confiar em uma entidade ficcional, chamada homo economicus, que sempre age com a razão, para substituir um ser real, o homo sapiens (Richard H. Thaler, em Misbehaving), que age muitas vezes com comportamentos “desviantes” (misbehave).
Nossas escolhas são influenciadas por hábitos, emoções, medos, ilusões, experiências, satisfação pela obtenção de resultados e outras influências externas, tais como as “cutucadas” (nudge) (Richard H. Thaler e Cass R. Sunstein, em Nudge). No contexto do direito ambiental, a legislação sempre partiu da premissa do “poluidor pagador” como forma de “cutucar” as empresas e tentar modificar seus comportamentos. A premissa é a de que o direito deve dar como resposta aos ilícitos ambientais a penalização a quem promove agressões ao meio ambiente. Espera-se que os agentes adotem condutas em conformidade com a legislação ambiental a partir das multas que recebem. Contudo, essas ações não têm resultado. Tenhamos como exemplo o caso da Vale, que foi responsabilizada pelo rompimento das barragens da Samarco, da qual é controladora, em Mariana/MG, e poucos anos depois deu causa ao desastre de Brumadinho/MG. Reincidiu na mesmíssima infração.
Mas há “cutucadas” que costumam ser bastante efetivas na modificação de condutas e os incentivos fiscais são exemplos concretos disso. Por exemplo, em 2006, primeiro ano de vigência da Lei do Bem, que instituiu os benefícios à inovação tecnológica, o Brasil contava com 130 empresas inovadoras e os investimentos realizados naquele ano foram de 2 milhões de reais; já em 2022 o país tinha 3.493 empresas chanceladas como inovadoras e mais de 35 milhões de reais empregados em pesquisa.
Nesse panorama, é muito provável que os fabricantes de veículos venham a ter reduzida a alíquota do Imposto Seletivo, não porque defendem a todo custo a bandeira do meio ambiente, mas porque terão reduções em seus encargos caso produzam veículos ambientalmente sustentáveis. O próprio governo parece acreditar nessa ideia, porque concedeu às montadoras outros incentivos fiscais e financeiros com o Programa Mover, justamente para a produção de veículos ecologicamente sustentáveis.
A experiência em torno das normas indutoras de comportamento é antiga, os exemplos aqui colocados são alguns poucos de muitos e não há dúvidas de que a equipe econômica do governo está a par desses dados. E aqui retornamos às indagações iniciais. A falta de uma “rota de saída” do Imposto Seletivo para mineradoras e fabricantes de embarcações e aeronaves indica que novas tecnologias que possam reduzir os impactos ambientais dessas atividades não estão no mapa de prioridades do governo. A conclusão subsequente é a de que o Imposto Seletivo não é realmente um excise tax, que visa alterar ou induzir comportamentos, porque não passa de mais um imposto criado apenas para ser mais uma fonte de arrecadação, nada mais.
Recentes notícias confirmam a afirmação. De acordo com levantamento realizado por economistas, em 2027 a arrecadação federal com o Imposto Seletivo sobre extração mineral será de 8,7 bilhões de reais, podendo chegar a 10,8 bilhões de reais em 2033. Os números dão conta de que pode haver encarecimento generalizado de bens essenciais para praticamente tudo, desde a indústria de base e a construção civil, porque não há nada no dia a dia da sociedade que não conte com produtos elaborados com minérios, ferro, cobre, petróleo, ou que tenham sido fabricados com máquinas e equipamentos constituídos por eles. Não há estudos acerca do potencial de arrecadação do Imposto Seletivo sobre embarcações e aeronaves, ou mesmo sobre álcool ou bebidas açucaradas, mas deve ser expressivo, e para esses segmentos também não há diretrizes apontando benefícios para que seus fabricantes desenvolvam novas tecnologias com vistas à mitigação de danos ambientais e à saúde.
Parece haver uma dissonância cognitiva do governo na condução da Reforma Tributária. Na semana passada apresentei o conflito entre o que espera o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com a retomada da economia via construção civil e crédito, e o que propõe para o novo modelo tributário: IBS e CBS justamente sobre operações imobiliárias e spread bancário, que encarecem o segmento que ele espera expandir. Agora, o Imposto Seletivo, que deveria ser utilizado como ferramenta para reduzir certas consequências nocivas, está sendo desenhado para ser apenas mais um imposto que não oferece nenhum estímulo ao desenvolvimento de medidas verdes e saudáveis.
No último capítulo de Memórias Póstumas, Brás Cubas traz todas as suas negativas. Lamenta não ter sido ministro, nem califa e não ter se casado. Mas encontra algo a dizer: não teve filhos e não transmitiu a nenhuma criatura o legado de sua miséria. A Reforma Tributária matou a coerência, o bom senso e a lógica. Esperemos que o final de sua tramitação no Congresso não seja apenas um legado de misérias fiscais.