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De olho nos tributos

Por Adolpho Bergamini Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia
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As cavernas de Matera e perigosa aliança que tornou possível a CBS e o IBS

Matera parece ser uma boa introdução para falarmos da aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto de regulamentação da Reforma Tributária

Por De olho nos Tributos
23 jul 2024, 11h13

As férias acabaram e já escrevo este texto nesta terra que tem palmeiras onde canta o sabiá. Mas as memórias da viagem ainda estão presentes, especialmente a inesquecível cidade de Matera, na Basilicata. A região é repleta de cavernas conhecidas como sassi, que serviram como moradias para seres humanos do Paleolítico e para povos que migraram após a queda do Império Romano. A cidade inteira foi construída sobre os sassi, ou em meio a eles, e o mais incrível é que famílias inteiras, com seus burros, cavalos, porcos e galinhas, moravam dentro dos sassi até o final da década de 1950. As fotos da época denunciam a sujeira e a pobreza das cavernas, ossos humanos eram usados como apoio para as calhas d´água e a mortalidade infantil girava em torno de 60%. Segundo as histórias, a população, mesmo vivendo em condições sub-humanas, era passiva e nunca se revoltou contra o governo italiano, simplesmente vivia.

Matera parece ser uma boa introdução para falarmos da aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 68/2024. Embora sua versão final tenha aspectos positivos, a verdade é que, mesmo assim, moradias em cavernas e uma população empobrecida com a sensação de que viver no pior é normal têm muita relação com a nova tributação sobre o consumo que está nascendo no Brasil.

Comecemos pelas boas notícias. As carnes foram incluídas na cesta básica e serão isentas da CBS e do IBS e alguns medicamentos que se sujeitariam à alíquota padrão agora terão a redução de 60%. No contexto das alienações imobiliárias, foi incluída a possibilidade de venda de lotes residenciais e seu redutor social da base de cálculo será de 300 mil reais. A construção civil ganhou a possibilidade de fazer algumas deduções da base da CBS e do IBS e, nas locações de imóveis, foi incluída a redução de 60% das alíquotas dos tributos.

Existem outros pontos positivos, mas são poucos e não conseguem fazer frente aos aspectos mais nefastos do PLP n. 68/2024 e da reforma tributária como um todo. Mesmo com alguns benefícios aqui e ali, no geral a população ainda pagará mais do que paga hoje por alimentos, aluguéis, empréstimos bancários, veículos, água e esgoto, medicamentos, itens de higiene pessoal, transporte público, ou serviços do dia a dia, como salão de cabelereiro, médicos, serviços de saúde, serviços de educação e outros.  

Precisamos fazer uma abstração filosófica e nos colocar acima dos debates atuais, para que possamos ver onde estávamos, onde chegamos e entendermos se houve sucesso na jornada.

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As conversas a respeito de uma reforma tributária sobre o consumo começaram no início dos anos 2.000. Os motivos eram (e são) muitos, como a regressividade de sua cobrança. Na medida em que incidem e repercutem no preço de produtos, ricos e pobres suportam a mesma carga tributária, de modo uniforme. Outra crítica está no sistema disfuncional: o país conta com 27 legislações diferentes de ICMS, mais de 5.000 normas para disciplinar o ISS, que cabe aos municípios, sem contar as confusas regras de IPI e de classificação fiscal de produtos.

Ao fim da tramitação do PLP n. 68/2024, a impressão que fica é a de que a reforma tributária não vai solucionar históricos problemas como esses.

Ainda não sabemos quais serão as alíquotas de referência da CBS e do IBS que, tudo indica, somarão 26,5%. Mas esse debate tende a se esvaziar, porque foi mantida a possibilidade de a União, estados e municípios fixarem suas próprias alíquotas da CBS e do IBS, sem quaisquer vinculações com as de referência.

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Vamos olhar os dados de hoje para tentar encontrar o possível peso fiscal da CBS e do IBS, tomando como ilustração uma empresa localizada em São Paulo. De acordo com os dados existentes a respeito de suas receitas tributárias, a arrecadação de São Paulo é de cerca de 16% em relação às receitas de seus contribuintes, já consideradas as alíquotas de ICMS de 7%, 12%, 18% e 25%, os créditos apropriados pelos contribuintes e outras variáveis. Já as alíquotas do ISS podem variar entre 2% e 5%, então, tenhamos que, por hipótese, a arrecadação efetiva da capital paulista seja de 3%.

Quanto à CBS, há um dado histórico bastante relevante que não pode ser ignorado, que é a primeira versão do tributo trazida pelo Projeto de Lei n. 3.887/2020. Lá, como agora, o governo o desenhou para ser simples, com a revogação de boa parte dos regimes fiscais diferenciados e dando aos contribuintes amplo direito à contração de créditos. Nesse formato, os cálculos da própria Receita Federal resultaram na proposição de uma alíquota de 12%.

O caminho do ICMS para o IBS passa por grandes mudanças. Talvez as principais, para as administrações tributárias, residam no amplo direito ao crédito, que significará um grande impacto orçamentário, e na cobrança do imposto no destino, quando a operação se inicia em um estado e termina em outro. Para alguns estados, como São Paulo, que é um estado “produtor” e que abastece o país, a alteração nas regras das vendas interestaduais pode se traduzir em perdas expressivas.

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Considerando essas variáveis, e para compensar as perdas, manter a carga estadual efetiva de 16% e a municipal de 3%, a alíquota nominal do IBS poderá chegar próximo dos 30%. E ainda temos a CBS, cuja alíquota de 12% foi pensada em 2020 em um cenário em que a União arrecadava IPI e não havia planos de zerá-lo. Agora, no novo contexto, será que os 12% ainda refletem as necessidades de caixa do Erário? Será que o Imposto Seletivo poderá compensar a perda de arrecadação do IPI a ponto de manter a estimativa feita anteriormente?

É provável que nos próximos dias, semanas ou meses surjam notícias, aqui e ali, sobre cálculos oficiais que começam a indicar alíquotas bastante elevadas. E aqui começamos a entender por que a reforma tributária não cumprirá seus propósitos. Afinal, a regressividade da tributação sobre consumo continuará sendo uma característica indesejada de nosso sistema tributário, mais agravada pelo aumento substancial dos impostos que fazem parte da composição dos preços de uma imensa gama de produtos e serviços que estão no dia a dia dos brasileiros. Tudo ficará mais caro, somente uma parcela da população terá direito a algum tipo de devolução dos tributos, pelo caschback, mas em relação a uma parcela limitada de bens e serviços.

A sonhada simplificação do sistema também pode não virar realidade, porque a tributação das operações no destino, aliada à atribuição dada a cada estado e a cada município para instituir suas próprias alíquotas de IBS, será uma dor de cabeça ao contribuinte que vende produtos ou serviços a clientes fora de seu município ou de seu estado. Isso será especialmente complicado para empresas que realizam vendas on-line. Imaginem uma empresa se ver às voltas com alíquotas de 26 estados, a alíquota do Distrito Federal e outras tantas dos mais de 5.000 municípios.

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Mas há algo que chama mais atenção do que as próprias mazelas do novo sistema. Logo após a provação do PLP n. 68/2024, circularam nas mídias depoimentos de apoio ao texto aprovado, entidades de classe otimistas e professores, juristas e advogados satisfeitos com o resultado. Também não passou desapercebido o ânimo da Receita Federal com o resultado da versão do PLP n. 68/2024 que passou na Câmara dos Deputados.

É saudável que haja diálogo entre contribuintes e as autoridades fazendárias constituídas, não há dúvidas. No entanto, é incomum que Fiscos e contribuintes comemorem o mesmo resultado porque, por natureza, então em posições diametralmente opostos. A história do contencioso tributário dá conta das milhões de ações ajuizadas para questionar tributos inconstitucionais e, mais recentemente, fomos testemunhas das incansáveis tentativas de revogação da desoneração da folha de pagamentos, da revogação da isenção tributária de incentivos de ICMS, da revogação do Perse, da limitação das compensações tributárias e da MP do Fim do Mundo. Também não nos esqueçamos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que chamou os conselheiros que representam contribuintes no Carf de detentos, marginais, e que nas últimas semanas vem sofrendo com memes exatamente por causa de seu ímpeto arrecadatório. Que aliança é essa, que certos setores e profissionais representantes de contribuintes querem firmar?

Os habitantes de Matera moraram em cavernas por mais de 300 anos, aceitaram viver em padrões pré-históricos sem reclamar, porque havia uma aliança velada entre a população e os governos ao longo do tempo. Eles haviam se acostumado a viver naquelas condições e não protestavam, enquanto a administração pública, por outro lado, não os incomodava e os deixava ficará por ali.

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Mas Matera sofreu uma reviravolta, floresceu e teve um final feliz. Seu renascimento começou na década de 1980, com a construção de hotéis, restaurantes, bares e lojas nos sassi. A cidade chegou a ser a capital cultural da Europa em 2019 e serviu de locação para filmes como A Paixão de Cristo, Mulher Maravilha” e do recente “007 – No Time to Die”.

Não foi uma reforma tributária que levou pessoas a morarem em cavernas, mas foram sentimentos de mansidão, resignação e aceitação que as mantiveram lá por séculos. A aliança que está sendo formada entre as autoridades fazendárias e contribuintes é perigosa, porque carga tributária alta pode induzir aumento da inflação, queda do poder aquisitivo e desaquecimento da economia. Sempre há tempo para renovar e florescer, mas se não mudarmos o sentimento de complacência, conheceremos os sassi sem precisarmos passar férias na Itália.

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