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De olho nos tributos

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Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia

O eterno retorno da tributação

Promessa de arrecadação mais eficaz, o split payment dá sinais de custos mais altos para o contribuinte

Por Adolpho Bergamini
5 mar 2025, 16h07

O eterno retorno de Friedrich Nietzsche é incrível. A sua construção está espalhada em variados textos, como Gaia Ciência, Assim Falava Zaratustra, Crepúsculo dos Ídolos, Genealogia da Moral, e Nietzsche o coloca de um jeito que desafia cada neurônio do seu cérebro. Mas, se você persistir, vai entender e vai gostar.

Em linhas gerais, no mundo existem forças ativas e reativas. As forças ativas são aquelas que movem determinadas pessoas, são as fagulhas que acendem nelas as chamas que incendeiam as caldeiras da vontade e da realização. Já as forças reativas querem arrefecer as forças ativas. Elas se opõem à determinação franca dos homens de dar cabo de suas realizações e, no mais das vezes, são pessoas fracas que se organizam em instituições para estabelecer padrões morais e de comportamento que devoram as forças ativas. No final, colocam todos em um mundo cinza e sem gosto.

Nietzsche crê nisso de tal maneira que chega a dizer que são os fortes que precisam ser defendidos dos fracos. O niilismo de Nietzsche é justamente isso, a submissão das forças ativas às forças reativas. Podemos ver isso a todo momento no dia a dia. Por exemplo, uma pessoa com grande determinação e senso de empreendedorismo se deixa apequenar por “conselhos” e “sabedorias” de outras pessoas, acaba convencido de que o melhor é ter a segurança de um emprego formal e burocrático, porque o mundo é assim mesmo e ninguém pode mudá-lo.

É aí que entra o eterno retorno. Em Gaia Ciência, a ideia vem como uma espécie de régua para a medição de sua satisfação com a vida. Nietzsche propõe uma reflexão. Imagine que um demônio diz que você viverá a sua vida novamente por infinitas vezes, tudo exatamente da mesma forma. Você terá as mesmas tristezas, alegrias, angústias e frustrações. O mesmo trabalho, as mesmas festas, os mesmos almoços com as mesmas pessoas. Nunca haverá nada novo e você não experimentará nada diferente. Mas talvez você comece a sentir que pode haver outra vida, que quer ser vivida e palpita no seu coração, mas sempre estará trancada. Esses pensamentos o agradam?

No último texto desta coluna eu falei dos percalços em torno da implementação do split payment, mas trago o tema novamente porque tivemos novas a respeito. Se você já leu o texto anterior, fique comigo e não vá embora, é rápido. A notícia é importante e tem tudo a ver com o eterno retorno, você vai gostar (ou melhor, não vai gostar).

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O split payment funcionará mais ou menos assim. No momento em que os adquirentes dos bens ou serviços contratados pagarem o valor devido ao seu fornecedor, as operadoras de pagamentos deverão separar (split) os valores relativos aos impostos e à remuneração devida e, depois, pagar (payment) os impostos à Receita Federal e ao Comitê Gestor do IBS, e pagar aos contribuintes que venderam seus serviços ou mercadorias.

No entanto, antes de repassar os tributos, as operadoras de pagamentos deverão acessar os sistemas dos fiscos e ver o valor dos créditos fiscais que os contribuintes têm naquele dia para ser compensados. Para que essas informações estejam disponíveis, os softwares dos contribuintes deverão estar afinados com o sistema dos fiscos. Caso dê algum problema, as operadoras de pagamentos serão obrigadas ao repasse integral dos tributos, sem descontos, e os contribuintes deverão pedir os ressarcimentos que entenderem cabíveis.

A ideia é boa, porque depois que estiver em funcionamento será virtualmente impossível sonegar tributos. Todavia, a diferença entre o remédio e o veneno é o tamanho da dose e, do modo como veio, o split payment é veneno.

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No texto da semana passada eu já trouxe um alerta: pode ser que não funcione. Minha conclusão tem base na história. Atualmente o país conta com pouco mais de 22 milhões de empresas e apenas cerca de 1% delas, talvez até menos, preenchem os requisitos para solicitar ressarcimentos de IPI, PIS e Cofins. Estamos falando de mais ou menos 200 mil empresas.  Para esse grupo tão pequeno, a Receita Federal tem o prazo de 365 dias para analisar e decidir os pleitos encaminhados. Mas a meta não é cumprida e o Poder Judiciário conta com centenas de milhares de processos ajuizados com o objetivo de determinar à Receita Federal que analise os pedidos formulados.

Agora, imaginem quando 22 milhões de empresas tiverem seus dados consultados diariamente para que os tributos devidos sejam, antes, abatidos dos créditos. E não estamos falando apenas de CBS e Receita Federal, mas também do IBS e do Comitê Gestor, que deverá estar atualizado com os dados dos sistemas fiscais de 26 estados, do Distrito Federal e de mais de 5 mil municípios. Como cereja do bolo, fica a informação de que as operadoras de pagamentos não são apenas os grandes bancos, mas também os pequenos e outras tantas entidades também pequenas, como as muitas operadoras de maquinhas de cartões, por exemplo, e outras sem muitos recursos.

Percebem que, para tudo dar certo, muitas informações devem ser prestadas por muita gente e no tempo certo? Conseguem compreender que é um sistema muito grande, de implementação cara, que talvez não possa ser custeado por muitos? Conseguem ver que há enorme chance de as coisas darem errado?

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Mais do que um achismo de minha parte, o problema agora é comprovado e público. Conforme noticiado em fevereiro, a Receita Federal e o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) decidiram que irão cobrar pelo uso das APIs (uma forma de integração de sistemas) que viabilizarão o acesso ao novo sistema de arrecadação fiscal. A razão é simples e objetiva: de acordo com o gerente de operações de sistema da Receita, o Fisco não tem dinheiro para bancar a infraestrutura. Ora, se a Receita Federal, que recebe investimentos milionários todos os anos, não tem recursos, os contribuintes terão? Não estamos falando apenas das grandes corporações, mas de todas as empresas do país, sem exceção, sejam micros, pequenas, médias ou grandes.

Já vivemos essas coisas no passado. Em meados dos anos 2000 ficou claro que a informatização poderia contribuir para os trabalhos de fiscalização e arrecadação de impostos no país. Então, por volta de 2007, foi lançada a nota fiscal eletrônica. Tivemos muitos eventos e palestras sobre o tema, dizia-se que o novo documento fiscal era só o começo e que teríamos um sistema de apuração eletrônica de alto nível, um game changer, o Sistema Público de Escrituração Digital – Sped. A fiscalização seria mais eficiente e a sonegação fiscal seria passado. Os contribuintes, por sua vez, teriam um modo muito eficaz e barato para apurar seus tributos, com a otimização das áreas contábeis e fiscais e a redução drástica dos custos de conformidade.

Contudo, as coisas não foram bem assim. A implementação do Sped trouxe aumentos expressivos nos gastos incorridos pelos contribuintes. Houve ampliação do quadro de funcionários das áreas contábeis e fiscais, novas aquisições de máquinas, equipamentos, processadores de dados e licenças de softwares fiscais especializados, bem como contratação de advogados, consultores e auditores para revisarem suas apurações. Mas a complexidade do Sped é extrema e, mesmo com tantos gastos em compliance, os contribuintes receberam, e ainda recebem, caríssimas multas pelo preenchimento equivocado de suas obrigações acessórias, mesmo que tenham pago seus impostos regularmente.

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O eterno retorno é fascinante e pode ser amplamente utilizado na sua vida. Por exemplo, se um dia você esticar umas duas ou três horas a mais no happy hour com o pessoal do escritório, é muito provável que encontre ódio e ranger de dentes assim que entrar pela porta de casa. Nessa hora, lembre-se do eterno retorno e diga logo: “Meu amor, você é o meu eterno retorno. Quando eu estava no bar, eu olhei em volta, avaliei minha vida e percebi que não era lá que eu queria estar. Mas aqui, olhando para você, eu tenho certeza de que a única coisa que desejo que retorne eternamente a mim é o seu rosto, o seu sorriso, porque com você eu viveria a mesma vida infinitas vezes”. Se disser com convicção, pode funcionar. Flores também ajudam, se aceitar minha sugestão, escolha flores do campo, são alegres e você vai precisar de alegria nessa hora.

Infelizmente, para o split payment o eterno retorno não traça um cenário tão romântico. Ele é a promessa de um método eficaz de arrecadação, mas já tivemos outras promessas. E, tal qual as outras, o split payment já mostra sinais de que entregará custos maiores aos contribuintes e a todos os que estão envolvidos na sua execução. Os envolvidos precisam fazer os cálculos, porque tudo indica que são impactantes, a ponto de a própria Receita Federal jogar a toalha.

Estamos fadados a reviver este ponto da vida. Poderíamos ser mais fortes e melhores, tendo na mira uma vida melhor, um sistema tributário melhor. Mas nos trouxeram a este ponto novamente e, ao que tudo indica, de tempos em tempos isso vai acontecer de novo. É o nosso eterno retorno. O pior é que flores do campo não podem ajudar aqui.

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