O imposto de renda na perspectiva de Leonardo Da Vinci
A lição do mestre italiano da pintura serve de alerta para olharmos com mais clareza o debate sobre a tributação no país
Leonardo Da Vinci é um dos grandes gênios da história, não há dúvidas, e já aos 20 anos pintou a sua primeira grande obra – “A anunciação”, atualmente exposta na Galerie degli Uffizi, em Florença, Itália. Caso não a conheça, vale a pena ao menos dar uma olhada pela internet. A princípio, parece estranha, porque é comprida e muito diferente das telas usuais, em geral quadradas. A mão direita de Nossa Senhora é maior do que a esquerda e visivelmente desproporcional em relação ao corpo. Também chamam a atenção certas estranhezas relacionadas à composição da imagem. Leonardo era um mestre e foi precursor da ideia de profundidade, mas, no quadro, as linhas diagonais que traçam os limites entre o prédio e o chão são disformes, não havendo nem mesmo alinhamento com os tijolos brancos da parede verde, logo acima. Ou seja, nada faz muito sentido.
Estudiosos quebraram a cabeça por anos, não compreendiam como Da Vinci, extremamente criterioso e detalhista, poderia ter sido o autor da pintura. Até que um grupo descobriu, em um de seus diários, que o renascentista, além de escultor, pintor, inventor e projetista, também tinha grande interesse pelo estudo da ótica. Daí por diante, entenderam que, longe de ser estranha, “A anunciação” é uma das grandes expressões da genialidade de Leonardo. Entenderam que a obra não foi pintada para ser vista de frente, mas de lado, e que não foi feita para ser exposta em uma sala, mas sim em um corredor. Vista de lado, a imagem fica perfeita, em proporções exatas, entregando uma sensação única de profundidade de campo. Então, leitor, se um dia você for a Florença, não deixe de ir à Galerie degli Uffizi e se maravilhar com “A anunciação”. Eu vi, é espantosa.
Leonardo Da Vinci provou que a correta perspectiva das coisas é fundamental ao entendimento do mundo ao redor. Usemos esse conceito para entender as mudanças nas regras do imposto de renda noticiadas recentemente.
No dia 1º de outubro a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 1.087/25, que isenta do imposto de renda pessoas físicas que ganham até 5 mil reais por mês e reduz a carga fiscal para quem ganha até 7 mil por mês. Em contrapartida, para compensar a perda de arrecadação o texto impõe a alíquota de 10% sobre rendimentos que hoje são isentos, inclusive dividendos, caso ultrapassem a marca dos 50 mil reais por mês.
O quadro emoldurado por integrantes da equipe econômica é o da benevolência. O discurso, que está guardado para as campanhas eleitorais de 2026, passará a mensagem de que o governo renunciou a cerca de 25 bilhões de reais por ano em arrecadação para reverter a quantia em renda à população mais pobre. Não há como negar que mais recursos circulando na economia é um dado positivo. As pessoas devem mesmo ter mais dinheiro disponível para satisfazer seus anseios e necessidades, o que acaba beneficiando fornecedores de bens e serviços com o aumento de suas vendas.
Todavia, a injeção de volumes significativos de recursos na economia em curto prazo, com ampliação da demanda sem incremento da capacidade de produção e oferta, pode levar a um negativo aquecimento repentino de atividades, e a uma possível distorção do equilíbrio entre oferta e demanda. Pressões inflacionárias não podem ser descartadas. Considerando que a taxa Selic, hoje, está no patamar recorde de 15% ao ano, justamente para frear a inflação, é bem possível que as novas pressões imponham ao Banco Central o dever de manter a taxa atual ou, pior, majorá-la. No médio prazo, isso pode esfriar a economia, com impactos negativos na geração de novos negócios, nas aquisições de bens móveis ou imóveis por parte de quem depende de financiamentos bancários e por aí vai.
Outro possível efeito é a queda do ímpeto de compras pela parcela da população que, doravante, terá seus rendimentos tributados pelo imposto de renda. Segundo dados que circulam na mídia, ela representa 20% da população brasileira. É esse o grupo de pessoas que adquire, com recursos próprios, imóveis não só para moradias, mas principalmente para investimentos, e é de suma importância para incorporadoras darem início aos seus empreendimentos. Também é o grupo de pessoas que negocia papéis em bolsa de valores e em startups, e que aceita os riscos de empreender e gerar novas cadeias mercantis, novos empregos. A pergunta que fica é simples: com 10% a menos em suas rendas, esses indivíduos continuarão comprando imóveis, negociando em bolsas, empreendendo e gerando empregos?
Mas não é só. Com a Medida Provisória nº 1.301/25, o governo forçou os limites da razoabilidade ao tentar impor a incidência de imposto de renda sobre Letras de Créditos Imobiliários (LCIs), Letras de Crédito Agrários (LCAs) e debêntures, que historicamente são isentas do imposto, bem como alterar as regras de tributação sobre rendas auferidas com fundos de investimentos, gravando-as ainda mais.
As pretendidas modificações tinham efeitos bombásticos, porque onerariam muito importantes instrumentos de captação de recursos financeiros a que empresas lançam mão todos os dias. O lobby dos contribuintes impactados entrou em campo e, por esmagadora maioria, a Câmara dos Deputados retirou a MP de pauta, que caducou. As perdas estimadas do governo são da ordem de 17 bilhões de reais, apenas em 2026.
Agora, as bets agora estão na mira para cobrir o rombo. Ou seja, ao invés de acertar as contas públicas, desvincular aposentadorias e benefícios sociais do salário-mínimo, cortar supersalários, limitar os gastos com cargos em comissão e fazer uma reforma geral da estrutura administrativa da máquina pública, o governo alimenta cada vez mais o ímpeto da arrecadação.
E aqui chamo atenção para a ótica que se deve dar aos fatos. Ao invés de olhar tudo pela forma como nos é (ou foi) apresentada, tentemos entender qual é a melhor observação.
Não é errado que contribuintes com renda superior a 50 mil reais por mês sejam isentos de imposto. Também não é errado que os rendimentos auferidos com LCAs, LCIs etc, sejam igualmente isentos. Errado é a população ter sido por tanto tempo sujeita à tributação da qual agora está livre. Errado é, a pretexto de manter uma máquina pública inchada e ineficiente, o governo lançar discursos populistas, para que o debate fique restrito à pobre discussão do “eu pago, você também deve pagar”.
O correto é passar os gastos públicos a limpo, saber o quanto de recursos o país realmente precisa para sustentar serviços públicos, conceder benefícios a quem precisa, entre outros. Somente com essa informação em mãos é que tem lugar o legítimo debate a respeito do quanto cada classe social deve contribuir ao orçamento público por via dos impostos.
Leonardo Da Vinci ensinou que perspectiva é tudo, sem ela obras-primas não passam de cenários imperfeitos e mãos deformadas. Do mesmo modo, estamos enxergando o debate público sobre a tributação com vieses imperfeitos e deformados. Não somos mestres do Renascimento, tampouco pinturas com lugar reservado em paredes de museus. Somos um país em construção, que certamente pode virar uma obra-prima, mas não antes de enxergar melhor.







