O Brasil comemora em 2024 os 100 anos do imposto de renda. Falar em “comemoração” de seu centenário pode parecer ironia, mas não é. No conceito por trás da estrutura do imposto reside a mais justa das regras fiscais, que é a mensuração da carga tributária segundo a capacidade econômica do contribuinte em suportá-la. É o que se chama “capacidade contributiva”. Quanto maior a renda, maior será (ou deveria ser) o ônus do contribuinte. Não há dúvidas de que a legislação falha em muitos pontos. No entanto, em geral o conceito é bom porque busca a progressividade da cobrança segundo um critério objetivo – a renda auferida, que não é uniforme na população. Contrasta, por exemplo, com a tributação regressiva dos impostos sobre consumo, que exigem de todos os contribuintes o mesmo peso, a despeito de suas desigualdades.
Mas, apesar das boas intenções, no final da década de 1970 o imposto de renda já não era popular, afinal, pagar tributos não é animador. Em 1979, para reverter o desgaste de 55 anos de sangria, a Receita Federal criou uma campanha publicitária para melhorar a imagem do imposto e trouxe a figura do leão para simbolizá-lo. Conta a história que o Fisco escolheu o rei das selvas porque é um animal leal, justo e forte. A biologia não é tão otimista e os documentários de TV dão conta que leões são exímios caçadores, predadores eficientes que consomem quilos de carne todos os dias. Estão no topo da cadeia alimentar e suas presas recebem sentença de morte quando entram na mira dos felinos. É virtualmente impossível fugir.
Talvez por isso o leão tenha passado a retratar a própria Receita Federal. O recente Relatório Anual de Fiscalização, divulgado em 8 de abril, comprova a hipótese.
Lá consta que, em 2023, a Malha Fiscal Digital gerou quase 25 mil autos de infração, totalizando 5 bilhões de reais. E cerca de 8 500 empresas receberam acompanhamento diferenciado por serem os maiores contribuintes do país. Representam 0,04% das pessoas jurídicas e respondem por 61% da arrecadação nacional: foram gerados 27 bilhões de reais em créditos tributários e desses, 5,6 bilhões ingressaram no Erário. Em fevereiro de 2023 o STF autorizou a quebra da coisa julgada e isso favoreceu o Fisco, gerando 290 milhões de reais na cobrança de CSLL contra empresas que, por decisão do próprio Judiciário, não eram obrigadas a recolhê-la no passado. Também consta que a Receita Federal avançou sobre os benefícios de ICMS concedidos pelos estados às empresas.
Após o Judiciário decidir que esses incentivos configuram renda, as ações fiscais estancaram as reduções do imposto em cerca de 490 milhões de reais, além de gerarem 180 milhões em autos de infração. Os cartórios não ficaram de fora do olho acurado da fiscalização e o incremento da arrecadação do setor passou a marca dos 3 bilhões de reais em 2023. Outras medidas foram tomadas. Por exemplo, o relatório menciona que quase 30% das fiscalizações encerradas resultaram em representações para fins penais. O número é expressivo, e infelizmente não há dados disponíveis para contrapô-los. Mas o recado é claro: ou o contribuinte paga o débito, ou é acusado criminalmente de sonegação fiscal. Ao final, o documento revela que, em 2023, o valor total das cobranças formalizadas ficou em torno de 225 bilhões de reais, um crescimento de mais de 60% da arrecadação quando comparado aos números de 2022, que são da ordem de 137 bilhões.
Neste ano, a Receita Federal promete ir adiante. Informa que seguirá determinada na fiscalização de prejuízos fiscais, que são espécies de créditos que o contribuinte pode utilizar para abater o imposto em exercícios posteriores. Em 2023, o resultado desse acompanhamento foi de quase 290 milhões de reais e deve ser maior em 2024. Os criptoativos também estão no radar e o Fisco já deu um spoiler: neste ano serão publicadas normas para alinhamento do país ao modelo de intercâmbio de informações proposto pela OCDE — organização que reúne 38 países em colaboração para o desenvolvimento econômico –, além da ampliação de acordos bilaterais para esses fins. O Perse, programa federal para compensação dos setores de eventos e bares e restaurantes por perdas na pandemia, passará por escrutínio e a nova regulamentação sobre fundos de investimentos ampliará os resultados fiscais em 2024. Mais ainda, neste ano serão implementados os ganhos de arrecadação decorrentes das alterações nas regras de dedução dos juros sobre capital próprio, promovidas no final do ano passado. Operações mercantis em plataformas digitais também estão na mira, assim como a renda auferida pelos contribuintes com a exclusão do ICMS da base do PIS e da Cofins, a chamada “tese do século”. A fiscalização eletrônica deverá ser aperfeiçoada e colaborar com o aumento dos êxitos fiscais.
Nos últimos meses, o noticiário econômico tem relatado o aumento das despesas pelo governo e a deterioração das contas públicas não vai impedir seus planos. A meta fiscal para 2024 é zero, mas a ministra do Planejamento, Simone Tebet, já declarou que será revisada mês a mês e pode cair. No contexto do crescimento das despesas, a única alternativa é o aumento da arrecadação.
O leão está com fome e vai caçar. Nas próximas semanas traremos mais detalhes sobre o relatório da Receita Federal, o rugido do leão.