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Diário da Vacina

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
A repórter Laryssa Borges, de VEJA, relata sua participação em uma das mais importantes experiências científicas da atualidade: a busca da vacina contra o coronavírus. Laryssa é voluntária inscrita no programa de testagem do imunizante produzido pelo laboratório Janssen-Cilag, braço farmacêutico da Johnson & Johnson.

O Dia D: Vacina ou placebo?

Voluntária do imunizante da Janssen, chego ao dia mais aguardado da pesquisa: a abertura do duplo-cego -- o último capítulo do Diário da Vacina.

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 mar 2021, 18h15 - Publicado em 19 mar 2021, 14h44

18 de março, 15h12: Médicos sabem ser monocórdicos quando lhes convêm. Sentada em uma cadeira plástica branca na mesma sala em que 121 dias antes havia recebido uma ampola com a potencial vacina anti-Covid da Janssen, eu poderia ter ouvido que havia ganhado na Mega Sena, que estava com uma doença desafiadora ou que havia sido imunizada há meses contra o novo coronavírus. O tom de voz e serenidade estampados no rosto da profissional de saúde naquela clínica privada no Rio de Janeiro seriam os mesmos. Depois de quatro meses como voluntária da corrida científica mais importante dos últimos tempos – a busca mundial por vacinas que contenham a pandemia – estava a instantes de saber enfim se, naquela tarde de 17 de novembro de 2020, havia recebido a vacina verdadeira ou uma dose inócua de soro fisiológico. Mas a voz da médica não era de calma. Era pura exaustão.

“Como está a situação em Brasília?”, me perguntou. Toque de recolher, UTIs abarrotadas de pacientes, montagem urgente de hospitais de campanha, vírus em franca ascensão, respondo. Compartilhamos o mesmo esgotamento mental. Gaúcha, ela tem presenciado os recordes sucessivos de mortes no Rio Grande do Sul e o alerta de que a região é a nova incubadora de contágios no país. Do lado de fora da sala onde me submeto à derradeira consulta antes da vacina, quatro outros pacientes aguardam para terem a mesma resposta que eu: era vacina ou placebo?

Enquanto conversava um pouco mais com outra médica sobre como a pandemia me consumiu mental e emocionalmente e me transformou em uma pessoa mais desolada com a imprevisibilidade da vida, um dos voluntários, um ator de TV, invade a sala. Entre constrangido pela interrupção e excitado pela vacina que agora corria por suas veias, ele buscava um frasco de álcool que havia esquecido há pouco. Estamos todos em um misto de alívio com celebração (semi) contida.

“Olha ela”, me diz o doutor Luís Augusto Russo, chefe da pesquisa em prol da vacina anti-Covid na clínica. Por mais de seis meses (comecei a azucrinar o médico com minhas dúvidas existenciais ainda em setembro), Russo foi o oráculo para onde recorria a cada hesitação. Ele está com olhos vermelhos, também esgotado. Ensaiamos um abraço para celebrar o fim da jornada, mas abraçar não é um verbo a ser conjugado na pandemia. Demos soquinhos com ambas as mãos, o máximo de afetuosidade que o vírus nos permite, e relembramos a caminhada: a burocracia de pesquisas científicas, que em condições pré-pandemia ficam engavetadas por meses em escaninhos do governo, a tradução da documentação da Janssen, as mensagens trocadas quando da descoberta do fim da fase 3 e da eficácia do imunizante, os pacientes que fizeram testes de imunidade porque não conseguiram aguardar até o dia de hoje. Nos despedimos com agradecimentos mútuos e o compromisso de não vacilarmos no enfrentamento do vírus. Arriscamos mais uma tentativa de abraço – ele, protegido com o imunizante da Oxford, em uma campanha do Conselho de Medicina, eu, em vias de receber a resposta definitiva sobre a vacina. Sou encaminhada para o fim do corredor.

Antes de receber a informação que aguardo desde o primeiro dia como voluntária, uma última bateria de exames. Está grávida? Está com Covid? Sentiu algum sintoma? Anda aglomerando como se não houvesse amanhã? Terminantemente ‘não’ para todas as perguntas. Por via das dúvidas, mais uma rodada de coleta de sangue. Duas ampolas comuns de laboratório são retiradas para que se avaliem como meu corpo responderá à exposição a novas variantes e por quanto tempo ele conseguirá, uma vez vacinado, se blindar contra o vírus que dizimou famílias inteiras e que já matou mais de 2,6 milhões de pessoas em todo o mundo. Não é de hoje que testes desta natureza estão sendo feitos com o universo de 45.000 voluntários, do qual faço parte. A vacina da Janssen, de dose única, mostrou-se 87% eficaz contra a cepa encontrada em Manaus e 81% contra a mutação sul-africana. Por fim, um teste do tipo RT-PCR. O olho começa a marejar. Sim, está na hora.

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Ao longo de quatro meses e dois dias, o Diário da Vacina teve 2.218.657 pageviews. Foram 125 posts em que relatei o dia a dia de angústias, como medir a oxigenação ou saber da morte de um voluntário, de esperanças com a chegada de imunizantes concorrentes, de medos com estudos científicos sobre novas cepas e o risco para crianças, de desespero com o sem-número de sequelas potenciais aos sobreviventes da doença e de sensações como a dor (‘arde, arde muito’, lembram-se?) após receber a injeção e a impressão de ter sido “atropelada por um caminhão” com a mialgia generalizada depois da dose. Foi também um grande período de conhecimento: cientistas renomados e divulgadores científicos me ajudaram a responder a muitas das dúvidas dos brasileiros, voluntários se tornaram vozes amigas quando a incerteza bateu à porta, robôs de internet tentaram se passar por pacientes em um objetivo nunca bem esclarecido para mim.

15h40: Na sala com a médica gaúcha, o computador com os dados criptografados dos voluntários está pronto para ser acessado. Seis números resumem quem sou, meu histórico clínico e qual substância recebi na pesquisa. A voz monocórdica começa a ler o resultado: “Feminino, dados randomizados em 17 de novembro de 2020, aplicação da dose em 17 de novembro de 2020, substância AD26.COV-2.S”. “É vacina”, me diz. Espera. Eu quero ver com meus próprios olhos o que o computador informa. Sim, vacina.

Minha reação imediata foi não ter reação nenhuma. Levanto da cadeira e recebo um laudo médico que comprova que aquela ampolinha cheia de esparadrapo que me foi injetada em novembro era, sim, o imunizante anti-Covid de dose única produzida pelo laboratório Janssen-Cilag. “Parabéns”, diz uma profissional de saúde que cruza por mim. “Parabéns”, diz a médica. A ficha começa a cair. Meus olhos se enchem de lágrimas, um sorriso nada discreto ocupa todo o rosto por baixo da minha PFF-2. Queria gritar, mas é uma clínica médica. Sentei em uma cadeira da recepção e chorei.

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Prometi voltar no início de maio para novos testes. Até o fim do ano que vem, mais ampolas de sangue e exames genéticos serão feitos para monitorar os efeitos de médio prazo de uma vacina contra o coronavírus. Será necessário tomar doses de reforço? A vacinação terá de ser anual ou a cada dois anos? Os imunizados podem transmitir para as outras pessoas? Que cepas ainda teremos de enfrentar antes de o mundo voltar à rotação normal? O material biológico de milhares de voluntários ajudará a ciência a buscar diariamente as respostas.

Vacinados ou não, aliviados ou ainda à espera da dose que teima em chegar, a ordem é que continuemos a seguir rigorosamente as orientações das autoridades de saúde, com o uso obrigatório de máscaras, adoção de distanciamento, ventilação de ambientes e proteção aos mais vulneráveis. Os olhos ainda estão marejados por minha brevíssima vida como voluntária. Vacina, sim. Fim do Diário.

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