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Diário de um Escritor

Por Flávio Ricardo Vassoler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Adeus às armas?

Perto do túmulo de Dostoiévski um senhor conversa com o busto do escritor como se ele o ouvisse atentamente e lhe replicasse

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h23 - Publicado em 15 jul 2018, 09h31
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  • Cemitério Tikhvin, nas imediações da estação de metrô Praça de Alexandre Niévski.

    Há quase 10 anos, em setembro de 2008, visitei o túmulo do escritor Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) pela primeira vez.

    Vou me aproximando da sepultura com expectativa – o lusco-fusco da memória se antecipa ao busto do autor com sua calva avançada e a barba longeva, desgrenhada e aberta em v na ponta, como a língua de uma serpente venenosa (ou do diabo em pessoa).

    Diário de um escritor na Rússia: “Adeus às armas?”
    Túmulo do escritor russo Fiódor Dostoiévski no cemitério Tikhvin, em São Petersburgo (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

    Súbito, quando estou a 30 passos (se tanto) do túmulo, entrevejo, apoiado junto à grade que cerca a sepultura, um senhor bem velhinho, com os cabelos brancos e ondulados como chumaços de algodão e as costas abauladas qual um casco de tartaruga.

    Ivan Fiódorovitch Razumíkhin (chamemo-lo assim) conversa com o busto de Dostoiévski como se o escritor o ouvisse atentamente e lhe replicasse entre uma baforada e outra de seus cigarros de fumo de corda.

    Ivan não nota minha aproximação sorrateira – me sento no banco postado a 3 passos entre ele e seu interlocutor de bronze: é quando percebo que, com suas mãos curvadas e repletas de nódoas, Ivan vai articulando suas colocações como se quisesse desenhar as palavras. É como se, diante de Dostoiévski, as palavras meramente ditas não se mostrassem tão tangíveis quanto as palavras escritas.

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    Abro meu caderninho de anotações para tentar capturar as dúvidas agônicas (a bem dizer, os disparos) de Ivan que me soam como as ruínas de alguém que sobreviveu ao crepúsculo de sua própria época.

    Assim falou Ivan Fiódorovitch Razumíkhin:

    – Fiódor Mikháilovitch, você vaticinou que a beleza salvaria o mundo – eu já não sei se o mundo salvará a beleza.

    – Fiódor Mikháilovitch, você chamou os socialistas de sua época de filisteus pelo fato de eles dizerem que um par de botas e uma barra de manteiga eram mais úteis do que um afresco de Rafael – você não chegou a trocar cartas e farpas com a minha geração revolucionária, para a qual a saciedade do estômago precedia todo e qualquer princípio ético e estético, como chegou a sentenciar Bertolt Brecht.

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria do filisteísmo contemporâneo a que a minha União Soviética não conseguiu sobreviver?

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    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se cada vez menos pessoas soubessem quem foram Rafael, Dostoiévski e Brecht?

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se assistisse a um vídeo em que jovens sumamente remediados dos Estados Unidos não conseguem mencionar o título de um único livro que os tenha tocado ao longo de seus primeiros 20 anos?

    – Fiódor Mikháilovitch, não seria você o primeiro a subscrever um aforismo de Brecht, segundo o qual há pessoas tão pobres, mas tão pobres, que só têm dinheiro?

    – Fiódor Mikháilovitch, Óssip Mandelstam chegou a sentenciar que a Rússia era o único país que levava a poesia verdadeiramente a sério, já que, à época de Stálin, era possível morrer por causa dela. (E você antecipou tudo isso em Os Demônios, Fiódor Mikháilovitch!)

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se começasse a sentir saudade do temor e do tremor de Mandelstam que se vinculavam a uma época para a qual a poesia não era simplesmente invisível como os mendigos que vão sendo empilhados em nossas sarjetas?

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    – Fiódor Mikháilovitch, com a tecnologia contemporânea, é possível chegar, num piscar de olhos, à estrela Sírius que o homem ridículo só pôde alcançar em sonho.

    – Fiódor Mikháilovitch, com a tecnologia contemporânea, é possível colonizar a estrela Sírius, com cujos habitantes edênicos o homem ridículo só pôde conviver em sonho.

    – Fiódor Mikháilovitch, com a tecnologia contemporânea, é possível pulverizar, num piscar de olhos, a estrela Sírius que o homem ridículo só pôde devastar em sonho.

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se soubesse que a ciência contemporânea proscreve a literatura e a filosofia como fósseis de épocas mitológicas e metafísicas?

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se soubesse que a ciência contemporânea considera que todos e cada um dos afetos humanos – o amor e o ódio, a loucura e a sensatez, a fúria e a temperança, o perdão e a vingança, a voracidade e o tédio, a militância e a alienação, a solidariedade e a indiferença, a admiração e a inveja, a euforia e a melancolia, a compaixão e a frieza – podem ser reduzidos a algoritmos bioquímicos passíveis de indução laboratorial?

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    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se, ao invés de lançarem mão de tabelas logarítmicas – como projetara o homem do subsolo –, a ciência e a publicidade contemporâneas viessem a utilizar softwares sofisticadíssimos para determinar o que, como e em que quantidade todos e cada um de nós vamos desejar com alta probabilidade estatística?

    – Fiódor Mikháilovitch, e se eu lhe dissesse que a probabilidade estatística é o nome atual para a verdade em um mundo que já não acredita em nada?

    – Fiódor Mikháilovitch, e se eu lhe dissesse que cientistas contemporâneos já colocaram eletrodos no cérebro de um rato e o fizeram andar para a esquerda e para a direita segundo os algoritmos da subjetividade laboratorial?

    – Fiódor Mikháilovitch, não seria você o primeiro a subscrever um aforismo de Theodor Adorno, segundo o qual não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade, mas há certamente uma história universal que conduza do estilingue à bomba atômica?

    – Fiódor Mikháilovitch, você não diria que, em face dos assassinatos executados por drones, o duplo homicídio cometido por Raskólnikov com uma machada é um crime que exala compaixão?

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    – Fiódor Mikháilovitch, será que as mutações desta época não requerem que Crime e castigo seja rebatizado (sem Deus) como Crimes sem castigo?

    – Fiódor Mikháilovitch, eu me lembro bem de que a jovem e impulsiva Aglaia Iepántchina assim sentenciou para o Príncipe Míchkin, fusão literária de Jesus Cristo e Dom Quixote: “Míchkin, você só tem a verdade… e, portanto, é muito cruel”.

    – Fiódor Mikháilovitch, será que, em face desta época, Aglaia não chegaria a dizer que a crueldade sem qualquer verdade é infinitamente pior?

    – Fiódor Mikháilovitch, ao invés de O idiota ser uma alegoria para a impossibilidade de a bondade do Príncipe Míchkin prevalecer em nosso mundo que não consegue cicatrizar suas feridas, o título de seu romance não teria sido um prenúncio de Donald Trump, seus eleitores e discípulos políticos mundo afora?

    – Fiódor Mikháilovitch, como sua obra anteviu e dissecou o autoritarismo de esquerda e de direita, não seria você o primeiro a subscrever um aforismo de Brecht, segundo o qual a cadela do fascismo está sempre no cio?

    – Fiódor Mikháilovitch, se eu não consigo deixar de querer que o homem do subsolo peça perdão para a jovem Liza e tente amá-la para além do charco do ressentimento, será que eu ainda consigo respirar sem a tutela dos aparelhos desta época?

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você sentiria em uma época que silenciou o badalar dos sinos em prol do ódio que buzina?

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria se matérias falsas (na verdade, meras manchetes) postadas em redes sociais tivessem o poder de determinar o voto dos eleitores?

    – Fiódor Mikháilovitch, o que você diria a homens e mulheres que já não querem ter filhos pelo fato de a paternidade ser uma relação irrevogável?

    – Fiódor Mikháilovitch, se viesse a dissecar esta época, você conseguiria discernir entre os sentimentos de pesar, ojeriza, impotência e medo?

    – Fiódor Mikháilovitch, que fazer?

    – Fiódor Mikháilovitch, por quê?

    – Fiódor Mikháilovitch, para quê?

    – Fiódor Mikháilovitch, esta época transformou a última pergunta em espírito do tempo e relegou ao exílio – ou, por outra, à falta de anunciantes – as duas perguntas que a antecedem.

    – Fiódor Mikháilovitch, você sentenciou que todos e cada um de nós não apenas vivemos – nós buscamos (a bem dizer, perseguimos) um sentido para viver.

    – Fiódor Mikháilovitch, se esta época faz com que a falta de sentido para viver persiga a todos e a cada um de nós, que fazer para continuar a continuar?

    – Fiódor Mikháilovitch, eu sou órfão de uma época que acreditou ser possível resgatar o Éden de seu cativeiro bíblico para transformá-lo em uma terra sem amos.

    – Fiódor Mikháilovitch, Oscar Wilde estava certo, então, quando sentenciou que mais difícil do que realizar um sonho é dele abrir mão?

    – Fiódor Mikháilovitch, que fazer quando o luto me é mais vivaz do que a artéria em meu pescoço?

    – Fiódor Mikháilovitch, seria possível voltar a acreditar em algo pelo fato de a memória dos momentos de entrega e comunhão ainda desenhar nos cantos da minha boca um esboço de sorriso para além das rugas e vincos?

    – Fiódor Mikháilovitch, seria possível ao adulto recuperar a maturidade da criança ao brincar, como recitava a poesia de Nietzsche?

    – Fiódor Mikháilovitch, seria possível ao velho recuperar a maturidade da criança ao brincar sem ter que voltar a usar fralda e babador?

    – Fiódor Mikháilovitch, o fato de eu perseguir um sentido não significa que ele exista, assim como o fato de eu querer que a vida continue após a morte não pressupõe a eternidade.

    – Fiódor Mikháilovitch, a ciência contemporânea vem mapeando cada quadrante do ser humano e ainda não encontrou resquício algum do espírito.

    – Fiódor Mikháilovitch, até quando Deus permanecerá em silêncio?

    – Fiódor Mikháilovitch, até quando o silêncio buscará Deus?

    – Fiódor Mikháilovitch, a humanidade já acreditou que, pelo fato de termos vontade de vivenciar a suma beleza e a infinita bondade, tal esperança só poderia provir de uma entidade sumamente bela e infinitamente boa, isto é, de Deus.

    – Fiódor Mikháilovitch, quem poderia ser o sujeito existencial da frase “acabei de morrer”?

    – Fiódor Mikháilovitch, até quando precisarei acreditar em Deus por meio de labirintos?

    – Fiódor Mikháilovitch, até quando me sentirei em labirintos por acreditar em Deus?

    – Fiódor Mikháilovitch, o otimismo revolucionário do jovem Marx o fez sentenciar que, em face do potencial criador e transformador da modernidade, tudo o que até então era sagrado seria profanado e tudo o que até então era sólido se desmancharia no ar. Cientistas contemporâneos – os apóstolos do apocalipse sem Deus – calculam que, em 50 anos (se tanto), já não haverá petróleo e guerras por água irromperão. Já não falta muito, então, para que a revolução não consiga mais morder o próprio rabo e tenha que fazer o elogio de seu próprio naufrágio.

    – Fiódor Mikháilovitch, seu pessimismo cristão em face da modernidade crescentemente ateia o fez sentenciar que, se Deus não existe, tudo é permitido. Será mesmo que, sem o freio de um Deus paternalista e anacrônico a ditar limites, os homens e mulheres não conseguirão fazer com que Eros e Tânatos selem uma trégua?

    – Fiódor Mikháilovitch, há algo mais belo e justo do que a noção de que, em face da eternidade, entes queridos jamais se separam?

    – Fiódor Mikháilovitch, há algo mais belo e justo do que a noção de que, em face da eternidade, todos aqueles que têm sede serão saciados?

    – Fiódor Mikháilovitch, me responda de uma vez: por que a vida e a história não desmentem Franz Kafka, quando ele sentencia que há esperança, mas não para nós?

    Sobre o autor

    Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

     

     

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