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Diário de um Escritor

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Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol

Os animais sociais de Fiódor Dostoiévski e Mikhail Bakhtin

A leste de Moscou, a cidade de Saransk abrigou o filósofo da linguagem russo Bakhtin durante o longo exílio a que o autor foi submetido pelas autoridades

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 27 jun 2018, 08h08

A aproximadamente 650 km a leste de Moscou, a cidade de Saransk, capital da República da Mordóvia, abrigou o teórico da literatura e filósofo da linguagem russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) durante o longo exílio a que o autor foi submetido pelas autoridades soviéticas entre as décadas de 1930 e 50.

Em 1929, Bakhtin publica a primeira versão de Problemas da poética de Dostoiévski, obra que pode ser lida como uma crítica tão velada quanto radical à ditadura soviética capitaneada por Ióssif Stálin (1878-1953).

Fyodor Dostoiévski e Mikhail Bakhtin
Fyodor Dostoiévski e Mikhail Bakhtin (//Reprodução)

Bakhtin considera que a obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) logrou desvelar a condição ontologicamente dialógica dos homens e mulheres, na medida em que as personagens despontam como vozes que forjam sua subjetividade em estreita articulação com a voz (a pergunta e a dúvida, a hesitação, a réplica e a tréplica) do outro. Segundo Bakhtin, o universo de Dostoiévski não está povoado de personagens cujos conjuntos de valores e tensões se insulam em si mesmos, como se Ródion Románovitch Raskólnikov, (anti-)herói do romance Crime e Castigo (1866), estruturasse sua subjetividade como um castelo fortemente resguardado em relação à alteridade e às crises que o transpassam. Nada seria mais estranho a Dostoiévski (e a Bakhtin) do que o aforismo atribuído ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951): “Os limites da minha língua [e da minha subjetividade] são os limites do meu mundo”.

Nesse sentido, antes de aterrissarmos na obra de Dostoiévski, vale a pena fazermos três breves digressões, em diálogo com os alemães Karl Marx (1818-1883) e Werner Herzog (1942 –  ) e com o português José Saramago (1922-2010), para melhor compreendermos os pressupostos da condição dialógica dos homens e mulheres. A partir, então, da recente greve dos caminhoneiros ocorrida no Brasil, falemos sobre o que vem a ser a ontologia do ser social.

No primeiro volume de O Capital (1867), Marx cita um velho provérbio alemão – Mitgefangen, mitgehangen (Presos juntos, juntos enforcados) – para falar que, em meio à moderna sociedade capitalista de produção de mercadorias, a profunda e coercitiva divisão do trabalho nos faz conviver segundo a lógica da “dependência coisificada universal”. Quando um setor vital e radicalmente capilarizado da divisão social do trabalho – em nosso caso, a circulação mercantil por meio de caminhões – estanca suas atividades, todos aqueles e aquelas que se veem como indivíduos autossuficientes (como castelos resguardados de sua própria vontade e representação) aprendem que, em sua impotência para dar sequência à reprodução do cotidiano, a individualidade só existe relacionalmente, isto é, vinculada aos demais nós da rede que nos entrelaça. Mitgefangen, mitgehangen (Presos juntos, juntos enforcados).

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Monumento em homenagem a Mikhail Bakhtin nos arredores da Universidade Estatal da Mordóvia, em Saransk
Monumento em homenagem a Mikhail Bakhtin nos arredores da Universidade Estatal da Mordóvia (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

No Ensaio Sobre a Cegueira (1995), o ateu José Saramago lança mão de um elemento sobrenatural (a cegueira branca) para escarafunchar a dinâmica mais recôndita da realidade: eis o paradoxo estético que faz com que a realidade, escavada pela ficção, seja mais real, tangível e cognoscível. Quando a cegueira branca despenca como um raio em céu azul, os ramos da divisão social do trabalho, um a um, vão entrando em colapso. A sociedade, mais uma vez, se impõe em relação à suposta e radicalmente ideológica (no sentido de falseamento da realidade) independência do indivíduo. Cegos juntos, juntos enforcados.

No filme O Enigma de Kaspar Hauser (1974), direção de Werner Herzog, Kaspar é o filho bastardo de um nobre que, para evitar o escândalo cortesão, enclausura o filho em uma torre e priva-lhe da possibilidade de socialização. O pai apenas visita o filho para lhe dar comida. Os anos vão passando, e o pai de Kaspar, um belo dia, tem a ideia de ensinar o filho a escrever. Como todas as mediações lógico-sociais faltam às vivências de Kaspar, o rapaz mal sabe o que é postar-se de pé e articular palavras – que dirá, então, idealizar conceitos para exprimi-los concretamente sobre o papel. Simbolicamente, o pai ordena que o filho escreva o verbo schreiben (escrever). Como a metalinguagem pressupõe a vivência social da lógica linguística anterior à palavra escrita e para além do âmbito propriamente gráfico, Kaspar mal consegue deslizar o lápis sobre o papel e, como um papagaio, só faz remedar o verbo-ação que o pai tenta inculcar no filho: sch-rei-ben. Como seria possível, então, afirmar a individualidade como algo alheio à ontologia do ser social? Bastardos juntos, juntos enforcados.

Os limites da minha língua [e da minha subjetividade] são os limites do meu mundo, como teria dito Ludwig Wittgenstein? Nada seria mais estranho a Dostoiévski (e a Bakhtin) do que tal aforismo. Pensemos, nesse sentido, sobre as profundas agonias morais por que passa o jovem Raskólnikov, o (anti-)herói do romance Crime e Castigo.

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Antena da raça (e de sua época), Raskólnikov apreende a potencial morte histórica de Deus em meio ao século XIX da Revolução Industrial e do cientista inglês Charles Darwin (1809-1882). Assim, para ser coerente com o novo culto niilista, o jovem intelectualmente intrépido resolve fazer um experimento para descobrir se está à altura do relativismo ético de sua época. Raskólnikov quer matar o Não matarás.

Raskólnikov, então, decide assassinar Alióna Ivánovna, a usurária cuja existência sem sentido só faz explorar a tudo e a todos. Um homem extraordinário como Napoleão Bonaparte (1769-1821) – assim raciocina Raskólnikov –, aquele para quem tudo é permitido, sequer hesitaria diante de um piolho como Alióna Ivánovna.

Eis que Raskólnikov, munido de um machado, rasga a cabeça de Alióna Ivánovna – e da irmã da velha usurária que, coincidente e inusitadamente, aparece no local do crime. Estamos, neste momento, precisamente no fim da primeira parte de Crime e castigo. Todo o desdobramento posterior do romance gira em torno das agonias que Raskólnikov passa a sentir diante do duplo homicídio – o castigo em face do crime.

Agora, se tivéssemos que refletir sobre as agruras de Raskólnikov em termos de sua (re)configuração subjetiva e dialógica, como o faríamos? Vejamos: sempre houve crimes na história da humanidade, então Raskólnikov não acaba de inventar a roda, isto é, há jurisprudência narrativa para o duplo homicídio, de tal maneira que a crise, nesse sentido, não irrompe como uma completa impossibilidade de significação/intelecção para os crimes.

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Ocorre que, para Raskólnikov – ou melhor, para a época niilista de Raskólnikov –, não se trata apenas de um mero crime, mas de um teste relativista – a morte do Não matarás. Com o sangue aspergido por seu machado, Raskólnikov se imagina o fundador de uma nova era, isto é, já não podemos prever os desdobramentos narrativos para uma ação que pretende ressignificar o ato mesmo que profana a lei e os profetas. Por esse prisma, a crise de Raskólnikov após o duplo homicídio pode ser entendida como a colisão de várias tensões, para além de sua própria subjetividade, que não conseguem enformar uma nova narrativa para reconciliar o jovem com seu novo eu. Após o duplo homicídio, Raskólnikov se tornou, dialogicamente, um outro para si mesmo.

Ora, uma coisa é conceber um assassinato; outra, realizá-lo. Os homens e mulheres reais, seres de carne e osso que dialogam e que vão se forjando social e historicamente, vivem os tabus e interditos erigidos pelas sociedades. Infringir tais tabus e interditos, em termos de configuração identitária, significa proceder a uma completa reviravolta narrativa e dialógica para a compreensão de si mesmo. É assim que, após o duplo homicídio, Raskólnikov se torna um outro para si mesmo.

Se o indivíduo abrisse a janela do (suposto) castelo resguardado de seu eu, ele ouviria os gritos de dor e desespero de Raskólnikov por já não entrever um princípio de contiguidade e continuidade entre seu eu anterior e seu eu assassino – não à toa, a maestria de Dostoiévski dá vazão a fluxos e influxos de consciência lancinantes que quebram a linguagem e fazem com que os leitores (e o próprio Raskólnikov) já não saibamos quem está enunciando a crise (se o narrador em terceira pessoa, se o próprio torpor de Raskólnikov). Ademais, Raskólnikov é um jovem inteligente, vaidoso e cioso de sua valentia. A crise por causa do fardo de ter aspergido sangue alheio também se vê transpassada pela vergonha de não suportar o fardo de ter aspergido sangue de outrem. [Raskólnikov, então, não estaria à altura de Napoleão, o jovem não seria um ser extraordinário, para quem tudo é permitido, mas um ser ordinário vivendo sob a tutela (arbitrária) da lei e dos profetas mesmo após a potencial morte de Deus.]

O mergulho radical no cosmos de Dostoiévski fez com que Bakhtin desdobrasse a condição dialógica dos homens e mulheres de modo a entrever (e a entreouvir) o mundo como um concerto polifônico, em meio ao qual as múltiplas vozes, sem poder definir as demais a partir de si mesmas, pressuporiam a convivência democrática para a expressão de suas mais variadas perspectivas; sendo radicalmente transpassado pelo outro em sua condição, o eu, conforme Bakhtin procura demonstrar, deveria ser visto como o eu-outro – a bem dizer, nós.

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Qualquer tentativa de definir o (e de ditar os rumos do) eu-outro a partir de perspectivas que lhe são radicalmente exteriores e heterônomas só faria estancar e silenciar a dialogia que, para Bakhtin, nos é constitutiva. A condição radicalmente antípoda à dialogia ontológica do eu-outro que, em termos globais, dá vazão a concertos polifônicos é a ditadura encarniçada. Os censores soviéticos de Bakhtin bem entreviram que Problemas da poética de Dostoiévski pressupunha outro tipo de sociedade – a democracia polifônica para além do estalinismo – para que a verdadeira dialogia humana pudesse ser vivenciada em suas mais diversas implicações e ramificações.

Não à toa, a segunda edição da obra de Bakhtin sobre Dostoiévski só seria publicada em 1963, dez anos após a morte de Stálin, quando a União Soviética, então sob o governo do premiê Nikita Khruschov (1894-1971), procedia a autocríticas e à tentativa de degelo das estruturas estatais totalitárias.

Para além do contexto estalinista que condenou Mikhail Bakhtin ao exílio, é possível dizer que as premissas ontológico-políticas de Problemas da poética de Dostoiévski ainda possuem profunda atualidade. Os inimigos da democracia, agora sob o capitalismo, parecem cada vez mais disseminados. Para todos aqueles e aquelas que se aferram, contra sua própria condição dialógica e plural, a determinadas formas identitárias, noções como horizontalidade e diversidade – diversidade ideológica e social, diversidade étnica e religiosa, diversidade de gênero e de orientação sexual – parecem blasfêmias em face da tradição hierárquica, monológica e ossificada de sociedades como a russa e a brasileira.

Como o diálogo bakhtiniano com Dostoiévski nos pôde demonstrar, a (re)configuração da subjetividade pressupõe não apenas o diálogo com o outro, cuja presença nos transpassa (como animais sociais que somos), mas também a dimensão de que a vida e suas inúmeras contingências se apresentam para o eu, em enorme medida, como um quarto escuro em que se vai tateando sem que seja possível saber, ao certo, aonde (e como) se vai chegar. Quando se aferram a visões de mundo e a padrões de identidade e comportamento estritos, as tendências antidialógicas e autoritárias pretendem tornar estanque e arquetípica a subjetividade que, ao longo da vida, é muito mais plástica e amorfa do que muitas doutrinas e liturgias, à esquerda e à direita, gostariam de admitir. Assim, é como se os espectros de Dostoiévski e Bakhtin rondassem o imaginário de José Ortega y Gasset (1883-1955), quando o filósofo espanhol define, de forma indefinida e indefinível, o processo de constituição de nossa subjetividade dialógica: “Eu sou eu e minha circunstância”.

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Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

 

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