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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

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Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung

Ainda sobre ‘Uberização’: o que ganhamos com uma lei

O PL gerou muito barulho pelas coisas menos relevantes, mas negociação coletiva, que gerou pouco ou nenhum barulho, mas pode resultar em seu maior benefício

Por Paulo Furquim de Azevedo
Atualizado em 9 Maio 2024, 12h01 - Publicado em 25 abr 2024, 10h37

Certa vez, voltando para São Paulo pelo aeroporto de Guarulhos, peguei um carro por aplicativo. Durante o longo e congestionado trajeto para o centro da capital, o motorista e eu fomos conversando sobre a vida. Ele morava em Guarulhos e trabalhava em Interlagos. Todas as manhãs fazia uma corrida do aeroporto para São Paulo, que o deixava perto de seu trabalho, e procurava, no final do dia, uma corrida que o trouxesse de volta para Guarulhos. Era um modo de fazer de um limão (o longo trajeto até o emprego) uma limonada (renda extra ao levar um carona como eu). 

Sempre que não soa invasivo, gosto de conversar com motoristas de aplicativo. São muitas histórias. Alguns vivem exclusivamente disso e não pensam em mudar de vida. Outros combinam a atividade de motorista com outras que, ainda que preferidas, não os absorvem (e não os remuneram) por completo. É o caso de um músico que tocava em casamentos e festas nos fins de semana, e que, durante a semana, dividia seu tempo com algumas aulas, estudos e corridas por aplicativos. Outro era um técnico em controle de pragas domésticas, altamente qualificado, cuja empresa havia sido fechada durante a pandemia. Conciliava a atividade de motorista com a procura por trabalho. Estava ali temporariamente, enquanto não conseguia se recolocar em um emprego formal e que o remunerasse pelas suas qualificações. 

Essas impressões nada sistemáticas são consistentes com a análise de um milhão de motoristas da Uber, feita em artigo de Cook e outros, publicado no prestigioso periódico The Review of Economic Studies. Há uma grande variedade de tipos de motoristas, vários dos quais buscam na plataforma justamente a flexibilidade. Nos Estados Unidos, muitas das motoristas mulheres estão nesse grupo, pois precisam da flexibilidade para acomodar a absurda desproporção na distribuição das tarefas de cuidar de filhos, pais e avós.

Assim é a vida dos motoristas da Uber e da 99. Cabe perguntar de que modo o PLP 12/2024 afeta essas pessoas. O assunto já foi objeto de um artigo anterior nesta coluna, que abordou o fenômeno da “Uberização”. Neste vamos avaliar os principais pontos do projeto, tentando entender por que essa iniciativa, que supostamente protege os motoristas de aplicativos, desagradou alguns deles e por que tantos outros aplicativos, como iFood e Rappi, não foram contemplados na mesma lei. 

São quatro os pontos principais do projeto de lei, tendo por propósito explícito a “inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho”. O primeiro é o estabelecimento de uma remuneração mínima para os motoristas, correspondente ao salário-mínimo nacional, líquido de custos médios da prestação dos serviços. Além disso, a lei impede que as plataformas tenham uma relação de exclusividade com motoristas e que estes sejam obrigados a um tempo mínimo de prestação do serviço. Em outras palavras, mantém-se a flexibilidade tão característica da atividade de motorista de aplicativo, o que é bom, embora sem efeito, visto que já é assim que operam as plataformas na ausência da lei. Também a remuneração mínima, exceto por eventos raros como a pandemia, tende a ser inócua, dado que a remuneração dos motoristas que trabalham em jornada integral tende a ser superior ao piso estabelecido. Não é por aqui que o projeto de lei fará alguma diferença.

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O segundo ponto é de especial interesse das empresas de aplicativos de transporte, ao reduzir a insegurança jurídica a que estão sujeitas. Após diversas ações judiciais no Brasil que buscavam o reconhecimento de vínculo trabalhista entre os motoristas e os aplicativos de transporte, a questão chegou ao Supremo, que ainda deve decidir sobre o tema. Por ora, há decisões conflitantes e algumas em absoluto conflito com o modelo de negócio de flexibilidade e ausência de exclusividade e subordinação nas relações entre motoristas e plataformas. O projeto de lei explicita que motoristas são trabalhadores autônomos, afastando as ações que buscam enquadrá-los à CLT. Seja por essa via, seja por eventual decisão do Supremo, tudo indica que a insegurança jurídica deve diminuir e, ao mesmo tempo, o modelo de negócio deve ser preservado.

O terceiro ponto, o mais vocalizado pelos idealizadores do projeto, trata da inclusão previdenciária dos motoristas por aplicativo. Para tanto, aproveita-se da estrutura centralizada de pagamento e registro das plataformas para a inclusão dos motoristas no Regime Geral de Previdência Social, o que os torna elegíveis à aposentadoria pelo INSS. A contrapartida é a contribuição compartilhada entre empresas e motoristas, que pesa no bolso, mas gera os recursos para a previdência social de motoristas. Se, de um lado, há um benefício inconteste de incluir trabalhadores que estavam à margem do sistema de seguridade social, de outro, o modelo afasta aqueles que buscavam na plataforma justamente a flexibilidade do mercado informal.

Não são poucos os motoristas que já contam com alguma espécie de benefício previdenciário ou assistencial. São aqueles que perderam o emprego e que trabalham temporariamente como motorista enquanto procuram um novo emprego. São também aqueles que, por sua renda, poderão contar com o Benefício de Prestação Continuada, ou mesmo aqueles que já estão aposentados. Para essas pessoas, o projeto de lei impõe um custo que não reverterá em benefício, pois já contam com alguma espécie de seguro social. Não é de espantar que esses se oponham ao projeto de lei.

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Finalmente, a proposta traz um quarto ponto muito pouco discutido e que é potencialmente transformador. Trata-se da organização dos trabalhadores por aplicativo como uma categoria sindical, estabelecendo parâmetros para a negociação coletiva entre eles e as empresas de aplicativos. Pelas características do negócio dessas empresas, há uma tendência a elevadíssima concentração de mercado, não sendo raro o uso por analistas de mercado da expressão the winner takes it all (ou almost all) para descrever o processo que leva ao domínio por uma única grande empresa. Em algumas cidades, a Uber é a única empresa operante e, em outras, possui mais de 70% do mercado. Seu poder de mercado é inegável, podendo utilizá-lo para aumentar o valor que desconta dos motoristas em cada viagem. Hoje, essa é uma decisão unilateral e pouco transparente, restando aos motoristas a opção de aceitar a prática da empresa ou desistir da atividade.  

A negociação coletiva pode criar um poder compensatório que permita aos motoristas a apropriação, ainda que pequena, dos vários ganhos gerados pelo modelo de negócio de aplicativos de transporte. A ideia de poder compensatório é, aliás, o que propõem Acemoglu e Johnson, em seu recente livro, Power and Progress, para que a inovação tecnológica trazida pelas big techs e pela inteligência artificial se converta em benefícios para a sociedade. 

O PLP 12/2024 gerou muito barulho pelas coisas menos relevantes, como a remuneração mínima e a inclusão previdenciária, que, como visto, modificam pouco a vida dos trabalhadores de aplicativos. Mas tem algo, a negociação coletiva, que gerou pouco ou nenhum barulho, mas pode resultar em seu maior benefício.

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