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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

Por Paulo Furquim de Azevedo Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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Índios Canadenses e Direitos de Propriedade

A Ciência Econômica se enriquece da contribuição e da troca com outras áreas do saber

Por Luciana Yeung
Atualizado em 12 jun 2024, 11h54 - Publicado em 12 jun 2024, 11h52

Diversos conceitos fundamentais da Ciência Econômica foram inspirados, se não diretamente “tomados” de outras ciências. Para começar, o famoso conceito de “equilíbrio de mercado”, claro, veio da Física. Uma ideia simples seria a de uma esfera de aço largada em um recipiente fundo: a esfera irá deslizar de um lado para o outro do recipiente, do alto para o fundo, do fundo para o alto, indo e voltando até perder todo o momentum e parar definitivamente no fundo do recipiente. Esse estado final da esfera é o que se chama de equilíbrio: ao contrário do estado anterior, ela não irá mais se movimentar – se nenhuma força externa for aplicada a ela – até “o fim dos tempos”. Essa ideia é base do conceito econômico de equilíbrio de mercado: caso nada mais se altere – em economia, dizemos ceteris paribus – a situação do equilíbrio do mercado não se alterará (preços, quantidades, número de empresas, consumidores etc). 

Outro importante conceito vindo de ciência alheia, sobre o qual já tive oportunidade de discorrer nesta coluna semanas atrás, é o da “destruição criativa”, vindo sobretudo do evolucionismo. Assim como ocorre na natureza, na economia, algumas empresas têm mais poder de sobrevivência face a grandes mudanças no ambiente (e depois disso tornam-se mais inovadoras, criativas e produtivas), enquanto outras empresas não têm a mesma sorte e acabam perecendo no caminho da “evolução da economia”. 

A teoria dos jogos, por sua vez, foi o “presente” que a Ciência Econômica ganhou da Matemática. Hoje uma área essencial na Economia, ela foi desenvolvida por matemáticos para analisar situações de decisões estratégicas, como guerras. Devemos a John von Neumann e John Nash esse grande legado, que inclusive é particularmente apreciado pelos estudiosos da análise econômica do direito para descrever e prever, por exemplo, relações contratuais e decisões de litigância ou acordos cooperativos.

Na verdade, a Ciência Econômica tomou emprestada da Matemática toda a linguagem formal. Novas teorias econômicas no mainstream hoje são desenvolvidas e somente “falam” a linguagem matemática. E muito cuidado para não confundir achando que a linguagem matemática é de números: muito pelo contrário, a linguagem matemática é cheia de letras gregas ou mesmo romanas. Ela é uma linguagem de lógica racional – e é assim que a economia, na perspectiva teórica, se comunica. 

Mais recentemente, a teoria econômica foi favorecida pelos achados de psicólogos mostrando “vieses” nos comportamentos. Para minimizar esse problema (ou, às vezes, para se aproveitar desse problema…), os estudiosos comportamentalistas sugerem, por exemplo, o emprego de nudges. Ambos os conceitos, hoje amplamente conhecidos por qualquer economista bem formado (mesmo sem ter tido aulas de economia comportamental) são heranças da Psicologia Comportamental. 

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Finalmente – antes de entrarmos efetivamente no conceito principal do texto de hoje – a também famosa Teoria Econômica do Crime afirma que os atos ilícitos são cometidos quando os indivíduos consideram que a análise de benefícios e custos favorece a decisão para tais atos, ou seja, ela mostra que o crime é uma escolha racional. Nada mais econômico do que esta ideia, e por isso vários criminalistas – sobretudo de formação jurídica e sociológica – ficam tão indignados com ela. Mas é um ledo engano. Gary Becker, o pai desta fantástica teoria, deixa bastante claro em seu artigo de 1968 que sua inspiração para tal teoria foi Cesare Beccaria, clássico jurista italiano. Está lá, em Beccaria, a ideia do crime racional.

Pessoalmente, meu conceito “alienígena” favorito é o de “tragédia dos comuns”. Gosto dele por ter vindo de uma área muito diferente da Economia – Ecologia – e por expressar tão genuinamente e tão profundamente um conceito complexo da ciência econômica. Ao que consta, um dos pioneiros desse conceito (não o primeiro, dado que a ideia é bastante antiga) foi Garrett Hardin, um ecologista, num artigo publicado em 1966. O exemplo clássico é de cardumes de peixes no mar de uma determinada região do planeta. Enquanto os seres humanos daquela região pescarem e capturarem os peixes de maneira racional (aqui significando de maneira limitada e sem excessos), esse recurso permanecerá à disposição (assumindo que os peixes conseguirão se reproduzir a tempo para manter a população mais ou menos inalterada com o passar do tempo). Porém, se não houver freios à pesca, esse recurso desaparecerá muito rapidamente. Esse problema tenderá a acontecer mais rapidamente em situações em que os peixes forem um recurso comum, de acesso livre a todos, e caso não haja nenhum tipo de impedimento para essa superutilização. Hardin cunhou o conceito desse fenômeno de “tragédia dos comuns” justamente para descrever o destino trágico que recursos comuns têm quando o acesso a eles é desenfreado e ilimitado.

Um grande economista, Harold Demsetz, discorreu longamente sobre a ideia de “tragédia dos comuns” em um dos seus mais conhecidos trabalhos. Lá, o autor contrai uma dupla dívida, pois além de se utilizar da ideia da tragédia dos comuns do ecologista Hardin, ele o faz expondo um caso narrado por dois antropólogos, Frank Speck e Eleanor Leacock. A estória é de indígenas canadenses que, por muito tempo, faziam caça de bisões para sua sobrevivência. Isso ocorreu normalmente até que vieram os colonizadores europeus e perceberam o grande valor comercial do bisão, e começaram a comercializar a pele e a carne do bisão com os indígenas da Península do Labrador. 

Foi exatamente esse comércio que fez com que o bisão quase tivesse deparado com o fenômeno da tragédia dos comuns, ou seja, quase tivesse sido extinto. Curiosamente, esse tipo de comércio não aconteceu nas outras regiões do país, por exemplo no sudoeste canadense. Assim, em momento algum, nesses outros lugares houve a pressão da tragédia. Como consequência, fenômenos sociais distintos surgiram nas comunidades indígenas das diferentes regiões canadenses.

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O que isso tem a ver com Economia? Tudo, e mais precisamente com a Análise Econômica do Direito. Harold Demsetz expõe a estória da quase tragédia dos comuns dos bisões para explicar o surgimento do direito de propriedade privada entre os indígenas da Península do Labrador, e não em outras regiões do Canadá. Como o título do artigo – Towards a Theory of Property Rights (Rumo a uma Teoria dos Direitos de Propriedade) demonstra, é uma teoria proposta por Demsetz: a tensão da tragédia dos comuns faz com que haja pressão para a criação de direitos de propriedade privada – que é um mecanismo humanamente criado para, entre outras coisas, mitigar a pressão da tragédia. Isso ocorre porque quando um recurso comum passa a ser privado, o(a) proprietário(a) não tem incentivo a superexplorá-lo ou explorá-lo de maneira irracional. Com isso, não há mais perigo de o recurso exaurir, de a tragédia acontecer.

Por tudo isso, e por muito mais, vemos como a Ciência Econômica se enriquece da contribuição e da troca com outras áreas do saber. Isso é sensacional. 

Luciana Yeung é Professora Associada do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora (juntamente com Bradson Camelo) de “Introdução à Análise Econômica do Direito” e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de artigos científicos e aplicados e capítulos de livro, todos na área do Direito & Economia. 

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