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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

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Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung

Os prazeres da carne e o imposto do pecado

Reforma tributária avança, mas decisão sobre o imposto seletivo revela mais interesses políticos do que fundamentos econômicos

Por Paulo Furquim de Azevedo
Atualizado em 18 dez 2024, 17h29 - Publicado em 18 dez 2024, 16h28

Chega ao final a longa jornada da reforma tributária sobre o consumo. Devemos, todos, comemorar a sua aprovação, que enfrentou interesses conflitantes para que conseguíssemos o bem comum da simplificação tributária. Cinco impostos e um emaranhado quase impenetrável de legislações foram serão substituídos por impostos sobre valor agregado, com diferentes alíquotas. 

O assunto principal na reta final da reforma foi a classificação dos mais diversos produtos nas categorias com diferentes intensidades de tributação, da isenção da cesta básica ao imposto seletivo, o chamado “imposto do pecado”, passando por categorias intermediárias, com alíquota plena ou com descontos de 30% e de 60%. Mas qual é o fundamento econômico para incluir um aparentemente  inocente refrigerante entre aqueles sobre os quais incide o imposto do pecado, e os prazeres da carne (da picanha, bem entendido), serem isentos? Para quem ainda não sabe, após muita discussão, as carnes e seus derivados, com exceção do foie gras, foram incluídos na cesta básica, ficando, assim, isentos do imposto sobre consumo. Atum e salmão, por outro lado, ficaram de fora, encarecendo o sushi em comparação ao churrasco. Gaúchos felizes, japoneses inconformados. O que explica essas diferenças, como veremos, não é a prescrição canônica do dever-ser da tributação, mas a resultante dos vários interesses econômicos em jogo, mediados na arena do congresso. 

Impostos sobre o consumo têm um efeito amplo sobre os mercados, que vai além da arrecadação tributária. Eles alteram os preços dos produtos, afetando, portanto, as decisões de compra e produção. Em mercados perfeitamente competitivos, sem falhas, os impostos indiretos tornam mais caro o preço pago pelo consumidor e menor o preço recebido pelo produtor. Por isso, o consumidor vai reduzir o consumo, o produtor vai produzir menos e a sociedade, como um todo, perde parte do valor que poderia ser gerado no mercado.  

Mas há circunstâncias em que o imposto sobre o consumo pode criar valor. Imagine que o imposto incida sobre a gasolina e não sobre o etanol. Isso vai afetar as decisões de proprietários de veículos, sobretudo daqueles que possuem automóveis flex-fuel, que passarão a utilizar mais etanol do que gasolina. Como o consumo de gasolina está associado a maiores níveis de poluição local e de emissão de gases de efeito estufa do que o consumo de etanol, o imposto sobre a gasolina pode criar valor via redução da poluição. Esse é um exemplo do que os economistas denominam “externalidades”, sendo a tributação por impostos sobre o consumo uma das soluções propostas pelo já secular economista inglês Arthur Pigou. Em sua homenagem, esse tipo de imposto que corrige as distorções decorrentes de externalidades ficou conhecido como imposto pigouviano. Esse deveria ter sido o fundamento para o imposto seletivo, ou seja, para tributar mais alguns tipos de atividade do que outros. É assim, aliás, que consta na fundamentação do projeto de lei, quando se menciona que este “incidirá sobre produtos considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”.

Não foi esse, contudo, o critério utilizado pelo Congresso na classificação dos produtos nas diferentes alíquotas. Vamos começar com o apelido dado ao imposto seletivo, “imposto do pecado”, que sugere que atividades imorais ou pecaminosas devam ser tributadas em maior intensidade do que as demais atividades. 

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Notem que não há nada de moral ou imoral no conceito de externalidades. Até onde eu sei, não é um pecado utilizar gasolina ao invés de etanol, ou ir de automóvel visitar a avó no interior ao invés de ir de ônibus. Do mesmo modo, poderíamos percorrer os sete pecados capitais e encontrar várias ações que, embora consideradas imorais por muitos, não implicam ônus a terceiros, não devendo, portanto, ser tributadas de modo desproporcional. Luxúria, gula e avareza, na maior parte das vezes, não geram externalidades negativas sobre a sociedade e, por isso, não deveriam ser objeto de imposto seletivo. Tributar um mercado competitivo orientado à satisfação da luxúria não cria valor econômico, destrói. 

Quando olhamos o outro extremo da tributação, a isenção para produtos da cesta básica, também notamos uma lógica distinta do dever-ser da tributação. Estão ali produtos considerados essenciais, “básicos”, como arroz, feijão e farinha. Embora sejam inegavelmente essenciais, não são produtos que geram efeitos externos positivos na sociedade, e que, por isso, segundo o velho Pigou, deveriam receber tributação reduzida ou ser subsidiados. Aliás, produtos básicos são aqueles cuja demanda tende a ser menos sensível a preços e, portanto, são relativamente menos afetados pela tributação sobre o consumo.

A atividade de saneamento sim gera externalidades positivas, mas não está na cesta básica. Mais interessante é o caso da carne bovina, a picanha nossa de cada dia. Por mais polêmico que seja o assunto, já há razoável consenso de que o consumo de carne está associado a maiores emissões de gases de efeito estufa do que o de carne de frango ou proteínas vegetais. A se tomar por esse fato, não há motivo econômico para isentar de tributação a carne bovina. 

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Antes que alguém acuse este colunista de insensível às mazelas sociais e à pobreza, ao concluir que a carne bovina não deveria ser isenta, já respondo que o melhor mecanismo para lidar com isso é a transferência de renda direta aos mais pobres, como ocorre com a bolsa família, sem afetar os preços relativos dos diversos produtos. É melhor fazer justiça social com o gasto público do que com tributação. 

A decisão que saiu do Congresso, obviamente, não é fruto da análise do dever-ser tributário, mas a resultante da relação de forças de grupos de interesse variados no processo legislativo, algo absolutamente legítimo. Os grupos mais bem organizados e cuja pauta tem maior adesão popular, caso típico do setor de alimentos, saem favorecidos. Saneamento, que gera tantas externalidades positivas mas que tem menor base política, ficou de fora. De qualquer modo, ainda que a reforma tributária não reproduza o ideal econômico, saímos todos ganhando com a simplificação da tributação sobre o consumo.

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