É ilusão do presidente acreditar que o vírus que atormenta o mundo não o atingiu. Fez mais que isso, matou uma chance quase certa de reeleição e, dependendo da evolução de seus efeitos, poderá eliminar também as condições para a conclusão do mandato. O presidente imagina-se livre da gripezinha enquanto agoniza de um mal bem maior: a erosão do próprio poder. Principalmente, mas não só, em decorrência do posicionamento dele diante das urgências da pandemia.
Com a crise sanitária deu-se por completada a obra de desconstrução da força política, da influência social e da autoridade moral da Presidência da República, cujo engenheiro atende pelo nome de Jair Bolsonaro. Está certo quando enxerga uma onda gigantesca de rejeição a ele, mas demonstra não compreender a razão quando delira imaginando que isso ocorra por seus méritos, pois tal reação acontece devido à terra arrasada que semeou em torno de si neste um ano e poucos meses de atuação desgovernada.
A situação talvez não estivesse no estágio de degradação a que chegou se Bolsonaro não tivesse dizimado seu capital político e explodido pontes de convivência institucional com coisas inúteis. Gastou patrimônio antes do tempo e, hoje, em plena crise de saúde pública, quando mais precisaria de âncoras de sustentação, está zerado: isolado, sem diálogo, desmoralizado, desautorizado, desacreditado.
Operando num mundo onde a lógica não tem vez, o presidente semeia a discórdia desde os primórdios de sua gestão. Não se deu ao respeito e ainda se dá ao direito de desrespeitar a tudo e a todos que vê como obstáculos ao exercício do mando. Por essa visão distorcida do que sejam atributos de um governante, Bolsonaro acabou perdendo o poder de comando.
Ao semear discórdia e comprar brigas inúteis desde o início, Bolsonaro demoliu seu poder e agora paga o preço na crise
É hoje um tutelado. Não traduz a realidade de maneira correta a atribuição dessa tutela aos militares que o cercam. Vai muito além: inclui o Judiciário na representação do Supremo Tribunal Federal, o Legislativo nas figuras dos presidentes da Câmara e do Senado, as unidades da federação nas pessoas de governadores e prefeitos, a insatisfação da sociedade retratada na imprensa, a diplomacia avessa aos ditames da cúpula do Itamaraty, entidades civis e parte significativa do universo religioso, entre outros setores que têm barrado iniciativas de Bolsonaro, sejam elas autoritárias ou contrárias à ciência.
Embora não tenha condições objetivas de provocar retrocessos irremediáveis como temiam alguns, o presidente causa um mal enorme ao país ao se posicionar como fator de instabilidade, obrigando a todo momento a uma mobilização de forças para contê-lo. Energia que deveria ser direcionada para o que de fato importa.
Se esse homem que ora desgoverna o Brasil tem consciência da própria responsabilidade pela armadilha na qual se encontra prisioneiro é uma incógnita, embora já não seja mistério para ninguém seu medo de perder o cargo antes do tempo regulamentar.
Mostram isso as constantes reafirmações autorreferidas de poder. Isso, em público. No particular já foi bem explícito a dois ministros do Supremo que, antes da crise atual, cada qual numa situação diferente, ouviram dele a aflitiva indagação: “Você acha que eu termino o mandato?”. Perplexos e constrangidos, calados ficaram.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682