Partidos, assim como as democracias numa definição contemporânea, não padecem de morte súbita, definham por ações de sabotagens lentas e graduais. Internas ou externas. No caso do PSDB a lenta derrocada vem sendo produzida no interior do organismo partidário há pelo menos vinte anos.
Portanto atribuir a atual estação fundo do poço a João Doria é um misto de erro, injustiça e autoengano. Para não falarmos em má-fé. O ex-governador chegou à vitrine do tucanato em 2016, quando se elegeu prefeito de São Paulo. É, antes, um dos sintomas, e não a causa das asneiras autofágicas que o PSDB já vinha cometendo mesmo antes de deixar o poder, em 2002.
No momento o partido está numa enrascada. Não consegue construir um mínimo de uniformidade sobre como se posicionar na eleição presidencial: com candidatura própria, na carona incerta do MDB ou ao deus-dará na base do cada um por si.
Um processo, segundo Marcus Pestana, dirigente do partido e pré-candidato ao governo de Minas Gerais, malconduzido, sem conversas produtivas nem transparência a respeito das intenções de cada ala. Produto, na avaliação dele, da junção de razões políticas justas com interesses bem menos nobres ligados à distribuição do Fundo Eleitoral, “instrumento de cooptação de caciques, o pior vírus que já se instalou na política brasileira”.
É verdade. Justifica a recente confusão, mas não explica a trajetória descendente iniciada ainda no exercício da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, quando vaidades, deslumbramentos e ambições desmedidas fizeram os até então majestosos tucanos começar a perder a majestade.
Fundado em 1988 por um grupo de boa etiqueta insatisfeito com o rumo do PMDB num processo algo semelhante ao do PSDB atualmente, o partido chegou cedo ao poder. Por obra das circunstâncias (impeachment de Fernando Collor, ascensão de Itamar Franco, Fernando Henrique na Economia) e do Plano Real, conquistou a Presidência da República ainda na infância partidária, com apenas seis anos de vida.
“João Doria não é causa, é antes um dos sintomas da lenta e autofágica derrocada do PSDB”
Chegou a governar ao mesmo tempo os três principais colégios eleitorais do país (SP, MG e RJ), ganhou duas eleições presidenciais em primeiro turno, disputou as quatro seguintes no segundo turno, perdeu todas e nunca mais se aprumou. Dos 34 e poucos milhões de votos obtidos em 1994 e 35,9 milhões em 1998, minguou para cerca de 5 milhões em 2018. Já teve 99 deputados federais e dezesseis senadores. Hoje são 21 na Câmara e seis no Senado.
O que houve? Não foi o único a desmilinguir. O DEM (sucessor do PFL) também se desmanchou até virar um anexo do PSL sob o nome de União Brasil. Mas o caso do PSDB chama especial atenção por causa da qualidade de seus pais-fundadores, da excelência da equipe ministerial e pelo conjunto de realizações desde o combate à inflação, a conceitos de ajustes permanentes na condução da economia, até programas transformadores nas áreas de saúde e educação. Sem esquecer a rede de proteção social depois aperfeiçoada pelo PT.
Um legado e tanto. Jogado no lixo por obra de ciumeiras, traições, erros de cálculo, dispersão de lideranças, mandonismos locais, ausência de organicidade partidária e há até quem cite entre as razões da falência a interdição ao surgimento de lideranças novas e a repetição de candidaturas presidenciais na base da imposição sem o suficiente respaldo da base.
Acrescente-se um quê de ingenuidade de Fernando Henrique, que, ao não ver seu governo defendido pelos pares na disputa capitaneada por José Serra, se dedicou a promover uma “transição civilizada” para Luiz Inácio da Silva. Levou uma “herança maldita” pela testa no dia seguinte.
A partir de 2002 as campanhas foram tão desastrosas em termos de negação dos enormes ativos de que dispunha o PSDB que só a ausência de outro contraponto ao PT explica o partido ter disputado em condições competitivas tantas eleições. A única em que se uniu, a de Aécio Neves em 2014, quase ganhou.
E agora? Agora o que se vê é parte do tucanato com Jair Bolsonaro, parte candidatando-se a virar um puxadinho do PT, parte na aba do MDB, onde e como tudo começou, e uma minoria advogando uma candidatura própria como salvação.
O ninho já esteve em chamas. Hoje sobram as cinzas em cima das quais a preocupação não é ganhar ou perder uma eleição, mas como fazer para renascer.
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Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791