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Arte do impossível

O que quer o presidente é que lhe apresentem uma fórmula mágica imune a prejuízos eleitorais

Por Dora Kramer Atualizado em 4 jun 2024, 15h10 - Publicado em 2 out 2020, 06h00

Seguia o Bolsa Família sua vidinha de filho mais ou menos enjeitado até que veio a pandemia e revelou-se a prodigalidade do rebento: forte produtor de votos, ao qual Jair Bolsonaro se dispôs de imediato a oferecer paternidade. A conta do custo-benefício a princípio pareceu simples, baseada na proverbial lógica de que é dando (aos pobres) que se recebe (também dos paupérrimos).

No entanto, a realidade, esta madrasta, revelou que as coisas são bem mais complicadas. Lá se vão mais de quarenta dias desde que o presidente manifestou intenção de imprimir sua marca em programa de transferência de renda robustecido e ampliado, e até agora não conseguiu achar uma solução. Pegou vários atalhos, trilhou diversos caminhos e hoje se vê perdido no labirinto por onde enveredou por vontade própria, no afã de construir uma porta de entrada na luta pela reeleição em condições ultravantajosas.

Sua equipe econômica faz esforços inúteis para agradar ao chefe, cuja noção de aritmética não leva em conta as relações de perdas e ganhos contidas nas operações de soma, subtração, multiplicação e divisão. Isso não apenas no tocante a números, mas também a implicações legais e políticas.

O presidente da República quer dispor de mais recursos sem cortar despesas, dar mais a quem precisa sem desagradar a quem de tantos benefícios não necessita. Não pretende enfrentar estruturas arraigadas com reformas profundas nem encarar questões espinhosas como extinção de auxílios ineficientes ou revisão do teto de gastos. Portanto, o que quer o presidente é que lhe apresentem uma fórmula mágica imune a prejuízos eleitorais. Em resumo, almeja o impossível, e aí Bolsonaro tromba com a política, a arte do possível.

“O governo pega atalhos e não chega a lugar algum na assistência aos cobiçados pobres”

Talvez ele esteja confiando que no final o Congresso opte por fazer a escolha possível: aumento de imposto. É a única explicação plausível para o presidente ter apresentado uma proposta tão inaceitável como essa de financiar o programa assistencial dando calote nos precatórios e retirando recursos do fundo de financiamento da educação básica.

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Jair Bolsonaro pode muito bem estar pensando em forçar os congressistas a concluir que a única saída para a necessidade de atender os mais pobres seria a chamada nova CPMF, defendida por Paulo Guedes. Ministro que já havia alertado sobre o risco de abrir “caminho para o impeachment” com excessos criativos no campo contábil e naturalmente reconhece o caráter de pedalada nos truques agora sugeridos com os precatórios e o Fundeb.

Como vimos na promessa de não tentar se reeleger, de não entrar na eleição municipal e na ordem de suspender o debate sobre o Renda Brasil (“até 2022”) uma semana depois propor o Renda Cidadã, o que o presidente diz não se escreve. Daí, a altíssima probabilidade de o desenho do Renda Cidadã não sobreviver aos efeitos do bom senso geral.

Mas Jair Bolsonaro não desistirá. Já começa a transferir responsabilidade quando cobra dos críticos uma solução e, não demora, acusará os congressistas de insensibilidade social e culpará as eleições pela resistência deles à socialização do prejuízo mediante o aumento de impostos. Isso porque está na gana pela reeleição a origem do problema que ele mesmo criou.

– Velhos de guerra. Não é coincidência, mas um elogio às vozes da experiência o fato de governadores e deputados eleitos sob a égide da “nova política” estarem sendo empurrados para fora do jogo. No Poder Executivo, Wilson Witzel (RJ) e Carlos Moisés (SC) sob o risco concreto de ser impedidos de completar os mandatos. No Legislativo, a troca de toda a turma de líderes e vice-líderes governistas novatos por gente velhíssima (para o bem e para o mal) na guerra da política.

Os governadores caíram na armadilha do voluntarismo, da imprudência e da ideia de que o poder em si pode tudo. Os deputados atropelaram-se ao privilegiar a fidelidade ao Planalto em detrimento das peculiaridades do Congresso. Ambos os casos servem de exemplo tanto ao eleitor quanto ao presidente de que o “novo” não é necessariamente sinônimo de “bom”.

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– Livre pensar. Não há no Supremo Tribunal Federal preocupação com o viés ideológico do substituto de Celso de Mello, seja ele o desembargador Kassio Nunes ou outro se Bolsonaro mudar de ideia. A identificação, no entendimento em vigor na Corte, é muito menos importante que a atuação autônoma na guarda da Constituição.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707

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