Fernando Henrique Cardoso chancelou a ideia de que o instituto da reeleição é dos males talvez o mais grave do nosso sistema político, ao escrever que foi um “erro histórico” o patrocínio da emenda constitucional que em 1997 permitiu a prefeitos, governadores e presidentes a chance de pleitearem a renovação de seus mandatos. Segundo ele, foi “ingênuo” acreditar que a partir daí os governantes não fizessem “o impossível” para se reeleger.
Com todo o respeito devido ao ex-presidente, ingenuidade é acreditar na inocência do então presidente que fez ele mesmo o “impossível” ao jogar o peso de sua autoridade e prestígio angariado no êxito do combate à inflação para aprovar uma emenda em causa própria. Feriu de morte ali sua majestade, mas ganhou mais quatro anos e ficou bem feliz com isso.
Vir agora com ato de contrição soa a tentativa de diluir responsabilidade por algo que guarda mais relação com a forma do que com o conteúdo. O defeito não está no instrumento existente em várias democracias, mas no uso que se faz dele. Por exemplo: quando da proposta da emenda, por que não se incluiu a obrigatoriedade de o postulante ao mesmo cargo se afastar por um período determinado antes da eleição?
A Justiça é falha na fiscalização do uso indevido do poder e os grandes partidos também são tímidos na contestação aos abusos com receio de firmar jurisprudências que venham a lhes criar empecilhos amanhã ou depois. Em resumo, repito uma frase que ouvi há décadas de Roberto Campos: não é a lei que precisa ser forte, é a carne que não pode ser fraca.
“O mal não está na renovação de mandatos, mas no mau uso da regra de levar vantagem em tudo na política”
No sentido oposto argumentam os defensores da busca de um atalho legal para que o presidente da Câmara e principalmente o do Senado possam disputar novo mandato em fevereiro de 2021. Aceitam o óbvio, que a Constituição veda a reeleição dentro da vigência do mandato do parlamentar, mas acrescentam simulando piscadelas retóricas de confiante malandragem: “Aqui é Brasil”. Onde, portanto, o impossível é possível quando quem parte e reparte fica sempre com a melhor parte, ainda mais se tiver com a faca e o queijo nas mãos.
Esse tipo de conduta ao qual têm se associado o senador Davi Alcolumbre por ação e o deputado Rodrigo Maia por omissão reforça o alegado arrependimento de FH que serviu de sustentação a várias manifestações de defensores do fim da reeleição como se, primeiro, os males da nossa política tivessem surgido em 1997, completando agora tenros 23 anos de idade, e, segundo, fossem ser resolvidos com a instituição de cinco anos de mandato sem direito à renovação.
Verdade que aí reside o problema? Seria até em parte, caso governantes também não fizessem o diabo para eleger sucessores. É perfeitamente possível conviver com a reeleição desde que não se abuse dela.
No caso dos presidentes da Câmara e do Senado, começando por respeitar ou para com clareza mudar a Constituição. Mas, para não incorrer em futuros mea-culpa, fazendo valer para o futuro, sem legislar em causa própria.
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704