O prezado leitor e a estimada leitora já tentaram tirar as meias sem descalçar os sapatos? Pois é. Um caso em que a ordem dos fatores compromete o resultado. As excelências envolvidas no mais longo processo eleitoral da história recente não se mostram atentas a essa evidência quando mergulham desde já na discussão sobre a escolha dos companheiros de chapa de titulares que, a rigor, nem existem.
São todos pré-candidatos e, uns mais, outros menos, sujeitos ao andar de carruagens para a definição dos respectivos destinos. Dependem, sobretudo, da capacidade de apresentar ao eleitorado credenciais à altura dos problemas a ser enfrentados a partir de janeiro de 2023 para consertar atrasos e apontar rumos de um bom futuro ao país.
Essa conversa com a população — feita de modo franco, de maneira a facilitar o entendimento e demonstrar como seriam alcançados os objetivos pretendidos — equivaleria a descalçar os sapatos. Ato essencial sem o qual não se chega às meias aqui compreendidas como a formação das chapas e o arco das alianças a ser postas à disposição do eleitor.
Pois, tomadas de um assanhamento no mínimo extemporâneo, suas altezas fazem exatamente o contrário: deixam de lado o exame das demandas da vida real dos brasileiros e concentram suas atenções nos arranjos ornamentais internos que supostamente as levariam a conquistar votos nesse ou naquele grupo social, em determinadas correntes ideológicas, nessa ou naquela região do Brasil.
Tal inversão diz muito sobre o distanciamento entre representantes e representados, mas fala mais alto sobre como políticos, quando perdidos, meio sem saber como atingir o alvo, agarram com avidez uma chance de mudar de assunto, arquivar o principal e se dedicar com afinco ao acessório.
A oportunidade surgiu com o balão de ensaio lançado por Luiz Inácio da Silva ao cogitar uma composição com Geraldo Alckmin. Algo fácil de falar, assim como se fala há anos sobre hipotética união entre petistas e tucanos como a salvação da lavoura pátria, mas difícil de fazer.
“Discutir agora quem será vice de quem é como tirar as meias sem descalçar os sapatos”
A empreitada pode até ter êxito, mas para isso será preciso Alckmin acreditar que não está sendo usado como objeto de ostentação para acenos ao centro. O PT teria muito a ganhar. A parte reservada ao ex-governador de São Paulo seria a de perder a chance de voltar ao Palácio dos Bandeirantes.
Isso para, na hipótese de Lula ser eleito, entrar num governo ao modo de estranho no ninho. Isolado e sem partido que lhe dê sustentação porque chegaria a bordo do PSB, onde seria cristão-novo. Qual o papel que os petistas lhe reservariam e mais: qual o grau de confiança a permear tal união?
Uma coisa é a figuração do candidato a vice na campanha, outra é seu papel — e, por que não dizer, utilidade? — no governo. Daí mais um fator da inútil paisagem que se desenha nesse horizonte de debates sobre quem será vice de quem. É discutível que a companhia na chapa renda votos ao titular, embora seja indiscutível em alguns casos a influência no fator posicionamento de imagem.
José Alencar acalmou o chamado mercado em relação a Lula, mas a tranquilidade (relativa, dados os abalos na economia na campanha de 2002) precisou do reforço da Carta ao Povo Brasileiro e só se consolidou quando o eleito adotou a política do antecessor. Marco Maciel acoplou o centro e a direita à candidatura de Fernando Henrique, mas seria um gesto ao vento sem o Plano Real.
Itamar Franco não fez marola na onda Fernando Collor. Tampouco Michel Temer levou eleitores a Dilma Rousseff. Hamilton Mourão não levou os militares a Jair Bolsonaro (estariam lá de qualquer jeito), cuja eleição se deveu ao desacerto geral entre a política e a sociedade.
Pode-se argumentar que no Brasil a escolha do vice seja importante pelo fato de oito deles — Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, Delfim Moreira, Café Filho, João Goulart, José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer — terem assumido a Presidência.
Verdade, mas e daí? Não fossem os vices, outros sucessores e outras formas de sucessão haveria. E aqui chegamos a um ponto de relevância para um debate sobre a real necessidade dessa figura nos tempos atuais. Para o reserva é ótimo: rende palácio à beira do lago, mordomias e, em caso de infortúnio do titular, até a Presidência.
Mas para o país ainda resta sem demonstração de que essa peça não se presta a mera decoração. Quando não, à conspiração.
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Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768