Quando deputado, Jair Bolsonaro falou várias vezes em prol do fechamento do Congresso. Ninguém deu bola porque ninguém na época dava bola para ele. Isso faz anos, a Presidência da República impõe restrições e, portanto, é possível enquadrar aquelas declarações no escaninho da inconsequência demagógica de um mau parlamentar desdenhado pelos pares.
No entanto, há conexão entre os dois personagens, o militante do baixo clero e o chefe da nação. Disso dá notícia uma entrevista daquele deputado à TV Bandeirantes, reproduzida por Thaís Oyama em seu livro Tormenta (Companhia das Letras), sobre o primeiro ano deste governo.
Na ocasião, em 1999, ele disse o seguinte ao responder sobre a hipótese de fechar o Parlamento caso fosse presidente: “Daria golpe no mesmo dia e tenho certeza de que a população ia fazer festa. Hoje em dia o Congresso não serve para nada, só vota o que o presidente quer. Se ele é a pessoa que manda, que tripudia em cima do Congresso, então parte logo para a ditadura”.
A julgar pelos modos dele em relação ao Congresso, Bolsonaro assumiu o cargo com a mesma convicção de que o Parlamento “só vota o que o presidente quer”. Era com a submissão que contava, mas, como não contava com a esperteza das raposas, não foi com a submissão que deparou.
Da mesma maneira como nos perdemos ao tentar analisar os movimentos do candidato e as atitudes do presidente pelas regras na normalidade até então em vigor, Bolsonaro se perde ao pautar sua convivência com o Poder Legislativo por critérios caducos. Desde o início seus auxiliares pontuavam que não adiantava os analistas insistirem na conveniência da formação de uma base sólida de apoio, porque esse não era o interesse do presidente.
O candidato acertou, mas o presidente errou ao apostar na negação da política
A concepção dele de “nova política” privilegiava a pressão de fora, intermediada pelas redes sociais. Ocorre que o Congresso tem regras próprias das quais de forma mais ou menos inédita as lideranças (Rodrigo Maia à frente) resolveram se valer assim que perceberam o tamanho da encrenca: ou reagiam e inovavam ou se conformavam em sucumbir à ofensiva deletéria de Bolsonaro.
O primeiro ato da reação deu-se na Câmara, com a vitória de Maia para a presidência da Casa em contraposição às preferências do Planalto. O habitual era que presidentes recém-eleitos conseguissem, por imposição ou negociação, eleger ou manter aliados inequívocos no comando da Câmara e do Senado. A partir daí e ao longo do último ano e dois meses assistimos a cenas às quais ninguém, muito menos o presidente, estava acostumado.
Quando e onde já se vira neste Brasil o Congresso rejeitar medidas provisórias? Raríssimas vezes, todas revestidas de gravidade, tidas como prenúncios (irrealizados, pois baseados na falta de hábito) de crises. Hoje, a devolução e/ou perda de validade de MPs estão incorporadas ao cotidiano. Não causam espanto e significam apenas que o Legislativo cumpre previsão constitucional.
Quando e onde já se vira neste Brasil o Congresso derrubar tantos vetos constitucionais? Nem sequer os examinava, a fim de não se atritar com o Planalto. Os vetos acumulavam-se às centenas, aos milhares. Uma conta feita em 2013 mostrava que havia 3 000 deles em estoque. Com isso, não se completava o processo legislativo.
Quando e onde já se vira neste Brasil o encaminhamento de tantos projetos de iniciativa dos congressistas? Para ficar nos de maior alcance na escala de importância, temos a reforma tributária, o conjunto de propostas para a área social (o 13º do Bolsa Família tornado permanente, por exemplo) e a educação. Sem falar no esforço na Previdência.
E o Orçamento? Nós nos habituamos, e o governo também, a chamá-lo de “obra de ficção” sem que se visse nisso anormalidade institucional, quando a gerência dos recursos federais é função originária e razão da criação dos parlamentos. Assim é tida e respeitada nas democracias avançadas. Por aqui, o Orçamento de execução obrigatória foi sempre tratado como ameaça.
Ao sair do papel, deu um susto no presidente, tão acostumado com “os antigamentes” que não mobilizou a tempo os recursos regimentais à disposição, para impedir a situação em que, ao final, se obrigou a negociar. O que tolamente se convencionou chamar de “parlamentarismo branco” é apenas a decisão do Congresso de exercer as prerrogativas das quais abria mão.
Da dinâmica do conflito escolhida por Bolsonaro fica uma lição a ser aprendida por ele: o Parlamento é ambiente onde se resolvem conflitos e, para isso, a política é a ferramenta mais eficaz. Na realidade, a única.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677