“Fulano pisou no tomate”, dizia-se lá pelos idos dos anos 1980 quando alguém cometia uma bobagem. Se fosse muito grande e em série, a coisa evoluía para a constatação de uma pisada no tomateiro. Trocando os tomates pelos limões com os quais Jair Bolsonaro pretendia fazer uma limonada no caso da CPI da Pandemia, pode-se dizer que o presidente pisou no limoeiro, tantos os tropeços dados na ofensiva para barrar a investigação em via de instalação no Senado.
Nada do que ele fez deu certo, como, de resto, costumam fracassar suas tentativas de criar tumultos, distrações e dispersões. Por ora encontra-se atolado no terreno pantanoso em que procurou jogar senadores, ministros do Supremo Tribunal Federal, governadores e prefeitos.
Se a CPI funcionará a contento e chegará a bom termo, são quinhentos a ser conferidos de agora em diante, mas a cena não é nada boa para Bolsonaro. Descontados outros fatores de que trato mais à frente, comissão parlamentar de inquérito nenhuma é boa para governo algum, justamente por ser instrumento de atuação da minoria. Daí a razão de a maior parte delas ficar pelo meio do caminho, sucumbindo ao emprego das armas à disposição dos detentores do poder.
O problema é que, referidos na máxima de que só há certeza sobre a maneira como começam, os alvos de investigação preferem se prevenir a não ter como remediar o irremediável depois que a coisa sai do controle. Quando, na história recente, inquéritos realizados pelo Parlamento atingiram seus objetivos, os efeitos foram fatais.
A CPI do PC Farias (1992) resultou em processo de impeachment de um presidente da República, Fernando Collor. A dos Anões do Orçamento (1993) provocou a cassação de seis deputados e a renúncia de outros quatro. A comissão de inquérito dos Correios (2005) desvendou o esquema do mensalão, derrubou a cúpula do PT e rendeu a condenação criminal de políticos, empresários e banqueiros.
Somando-se exemplos como esses às incertezas a respeito do curso das investigações, governos não dormem no ponto nem se entregam à soberba do menosprezo em relação ao potencial tóxico das CPIs sobre seus destinos. Quando aos exemplos e às incertezas se acrescentam inúmeros indícios de que os alvos têm culpa no cartório, a situação inspira ainda maiores cuidados.
“Bolsonaro atolou-se na tentativa de criar tumultos em série para evitar criação da CPI”
É nessa condição que se encontra o presidente Bolsonaro. Sobram motivos para que o Congresso mergulhe na investigação das ações e omissões do governo federal e de desvios ocorridos em estados e municípios na pandemia em curso, a fim de que sejam definidas com clareza as responsabilidades e imputadas com Justiça as devidas punições.
Portanto, a comissão parlamentar de inquérito proposta pelo Senado tem plena razão de ser. Integra aquele grupo das CPIs imprescindíveis, tais como as citadas acima, que furaram as bolhas de esquemas de corrupção sistêmica. Nessa agora da Pandemia há a agravante de o prejuízo ser contabilizado em perdas de vidas. Se porventura ficarem estabelecidos dolos, estaremos diante de delito mais sério que roubo de dinheiro público.
Além desse dado trágico, essa CPI talvez seja a que reúna maior quantidade de evidências sobre o fato determinado antes mesmo de começar. Tanto as ações cometidas quanto as omissões perpetradas no transcorrer da crise sanitária desde o seu início estão muito bem registradas nos atos e palavras do presidente da República e seus prepostos, o mesmo ocorrendo nos inquéritos que investigam ilícitos em repasses de verbas federais país afora.
A investigação em comissão parlamentar — caso funcione de maneira efetiva, rigorosa e competente, bem entendido — certamente descobrirá mais. Ainda que não venha a revelar grandes novidades para além do já amplamente exposto, desvendaria meandros, organizaria e desenharia em contornos bem nítidos para o olhar da população (e posteriormente para exame de outras instâncias) o comportamento do poder público na pandemia.
A CPI por si não tem o condão de resolver os problemas. Não trará vacinas nem fará de Bolsonaro um líder capaz de inspirar comportamento social condizente com a crise. Mas conta com a força da visibilidade para mostrar o que poderia ter sido feito e o que não foi feito para minorar o alastramento do vírus, administrar melhor o sistema de saúde e principalmente estancar o ritmo alucinante de vítimas fatais do até agora maior mal do século.
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Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734