A CPI da Covid-19 puxou o fio de uma meada cujo trajeto pode levar a um esquema de corrupção na contratação de fornecedores que nada fica a dever ao escândalo da Petrobras desvendado pela Operação Lava-Jato. Com a agravante de que, desta vez, a mercadoria posta no balcão de negócios foi (e é) a vida de milhares de brasileiros.
A coisa toda talvez não resulte na abertura de processo de impeachment de Jair Bolsonaro, mas já o enredou numa trama da qual não tem sido capaz de se desvencilhar. E, a julgar pelas tentativas mal-ajambradas de explicar as anomalias no contrato de compra da vacina Covaxin e a entrada em cena do fator propina, o presidente dificilmente conseguirá sair ileso dessa confusão que está apenas começando. De um impeachment poderia sair inocentado, mas da opinião pública não escapa.
Surgem a todo momento novas notícias de ilícitos relacionados a vacinas, a testes para detecção do vírus e outros produtos associados à crise sanitária. São problemas que ligam a conduta do presidente na pandemia a suspeitas de corrupção e o põem numa situação que vai muito além de ações e omissões negacionistas pautadas por ideologia ou distorção de caráter.
Se os exercícios da negação e da boçalidade já provocaram revolta e aumento da avaliação negativa do presidente por terem estimulado a contaminação e contribuído para o número de mortes que poderiam ter sido evitadas, a coisa tende a ficar muito mais grave quando se entra no terreno da troca de vidas por dinheiro.
A ocorrência de crimes de prevaricação, de corrupção e/ou tráfico de influência com participação direta de Bolsonaro está sob investigação e ainda não se estabelece como fato incontestável. Se o chefe da nação agiu em benefício próprio ou com intuito de proteger alguém que tenha oferecido ou recebido promessa de vantagem indevida é o ponto a ser esclarecido e que o Planalto procura contornar ao tentar circunscrever o caso ao campo dos erros meramente formais.
“Quem com a negação da vacina feriu, com ilícitos na compra de vacinas vai sendo gravemente ferido”
Depois de dez dias de puro atordoamento, o governo entrou no modo redução de danos ao anunciar o reexame do contrato da Covaxin, coisa que o susto o impediu de fazer no primeiro momento. Só havia uma maneira de desmontar a denúncia que os irmãos Luís e Ricardo Miranda levaram ao presidente em 20 de março último: a apresentação de uma imediata, concisa e muito bem contada história. Ocorreu o contrário com a série de lorotas desmentidas, uma a uma, pelos fatos.
Da acusação de fraude documental lançada sobre os denunciantes às versões de que dois auxiliares demissionários — o ministro Eduardo Pazuello e o secretário-executivo da Saúde, Elcio Franco — haviam sido encarregados de investigar e nada encontraram de errado, o governo só fez se enrolar.
O presidente ainda tentou recorrer ao velho truque de dizer que não sabia de nada, mas não colou. Diferentemente do que aconteceu com o então presidente em 2005, que sob a mesma alegação conseguiu ficar de fora da denúncia do mensalão apresentada pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro não pôde contar com o benefício da dúvida. Um deputado de sua base de apoio apontou dia, hora e local em que levou a ele a denúncia e ainda acenou com a possibilidade de apresentar provas caso fosse desmentido.
Ante a hipótese de existir uma gravação, Jair Bolsonaro preferiu não pagar para ver se era blefe e retraiu-se. Diante da notícia-crime por prevaricação apresentada ao Supremo por três senadores e de pronto encaminhada pela ministra Rosa Weber para manifestação da PGR, foi ordenada a suspensão do contrato que originou a puxada do primeiro fio, “para análises mais profundas”. Isso três meses depois do aviso de que havia gato naquela tuba.
Não foi acionada a Polícia Federal, conforme prometido inicialmente aos denunciantes nem se negou que por ocasião da visita deles ao Palácio da Alvorada o presidente apontara o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, como contumaz autor de “rolos”. O contrato da Covaxin acabará por ser cancelado e o líder, devagar, afastado à francesa, provavelmente por iniciativa própria em encenado gesto de desprendimento.
Mas, ainda que não ocorra o impeachment — o que nos bastidores o mundo político todo rejeita —, o presidente Jair Bolsonaro continuará na vitrine na desconfortável e eleitoralmente periclitante condição de vidraça.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745