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O cardápio de inutilidades discutido pelas autoridades é interpretado como tentativa de desviar a atenção de questões espinhosas

Por Dora Kramer Atualizado em 4 jun 2024, 14h41 - Publicado em 30 out 2020, 06h00
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  • Quando a gente vê autoridades brigando por vacina que não existe, pregando convocação de Constituinte ou falando em privatização do Sistema Único de Saúde, dá vontade de mandar suas excelências lavar uma louça.

    Ou seja, que parem de tergiversar na contemplação de inúteis paisagens e tratem do que, no concreto, interessa a um Brasil cheio de problemas a ser enfrentados: uma pandemia que não acabou, economia em rumo incerto, educação de péssima qualidade, infraestrutura sofrível, desigualdade profunda, meio ambiente sob risco, sistema político-­partidário obsoleto, e por aí vai o país de futuro duvidoso.

    O cardápio de inutilidades é interpretado como tentativa de desviar a atenção de questões espinhosas de modo a substituir no noticiário, por exemplo, denúncias de mau uso do poder e levar imprensa e redes a se ocupar de discussões sobre o nada. Enquanto se fala do acessório, o principal fica na prateleira.

    Essa explicação até faz sentido, mas não passa da página dois, porque os enroscos reais não desaparecem e os temas de fantasia tendem a morrer na praia estorricados sob o sol da realidade.

    O debate da vacina (obrigatoriedade, compra dessa ou daquela, origem e intenções conspiratórias) vai acabar no dia em que ela realmente existir, quando a questão principal será se haverá imunizante para todo mundo. Estudo da revista Nature mostra que mais de 85% dos brasileiros pretendem receber vacinação. Note-­se, é um universo de cerca de 170 milhões de pessoas. A privatização dos postos de saúde do SUS não passaria pelo crivo do Congresso, muito menos pela opinião do público, que na pandemia pôde constatar a dimensão da importância desse serviço, um dever obvia e constitucionalmente a ser assegurado pelo Estado.

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    E aqui chegamos à Constituição que, no dizer do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, confere direitos demais, fiscaliza em excesso e, por isso, torna o país “ingovernável”. Ora, déficits de governança são fruto de administrações incompetentes, e não de uma Carta Magna reconhecida como das melhores, não obstante defeitos em boa medida decorrentes do afã de resolver todos os problemas de um Brasil mal saído de 21 anos de ditadura. Essa coisa de tentar amoldar Constituições às conveniências do poderoso da vez é truque velho e não cola mais.

    “Polêmicas inúteis servem ao intuito eleitoral de não deixar cair a polarização”

    Mas, se o ardil do rodeio não tem vida longa, qual a utilidade dele para seus autores? A seguinte: manter a peteca da polarização no ar, não deixar arrefecer o clima de conflito de posições extremadas, a fim de tirar proveito eleitoral do ambiente de polêmica onde vicejam emoções intensas.

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    Ou não foi assim que Luiz Inácio da Silva governou? Ou não foi assim que Jair Bolsonaro se elegeu? Pois é assim que tentará se reeleger. Puxa uma briga daqui, outra dali, e vai levando seu experimento na busca do malvado ideal com o qual se confrontar.

    Como o PT anda fraquinho como adversário, Jair Bolsonaro precisa alimentar torrentes de paixões, pois na racionalidade não é provável que a maioria do eleitorado tope repetir a dose.

    O fuzuê do momento é com João Doria, o mais nítido aspirante ao Palácio do Planalto em 2022. Bolsonaro polemiza com ele, seja para levá-lo a cometer algum erro incontornável, seja para usá-lo como sparring à falta de outro ao alcance. O governador de São Paulo polemiza com o presidente, um ótimo contendor para quem precisa se tornar nacionalmente cada vez mais conhecido e reconhecido no papel de contraponto.

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    Assim, a corda permanece esticada e o eleitorado conduzido a se posicionar no extremo que mais lhe agrada. Ou menos desagrada. Com isso, perde força a articulação de uma alternativa ao centro, tarefa em que Bolsonaro se empenha também em outra ponta, na cessão de espaços a gente da política, digamos assim, tradicional que em 2018 optou por ele com medo de perder para o PT e em 2022 pode seguir com ele, aí já na perspectiva de preservar os ganhos obtidos.

    HOUVE UM VERÃO
    O ex-marqueteiro do PT João Santana defendeu no programa Roda Viva uma chapa Ciro Gomes e Lula de vice como se fosse inspirada na Argentina, onde a ex-presidente Cristina Kirchner concorreu a vice de Alberto Fernández.

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    Não é, já houve aqui algo parecido: em 1998 Leonel Brizola concorreu a vice de Lula. Não deu certo e ainda rendeu ao PT uma aliança malsã com Anthony Garotinho, à época no PDT de Brizola.

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711

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