Na década de 1980, o Bozo reinou no picadeiro nacional. E, de todos os nove atores que interpretaram o personagem entre 1980 e 1991, primeiro na TVS e depois no SBT, como foi rebatizado o Canal 4, de Silvio Santos, o mais conhecido deles foi e é, de longe, Arlindo Barreto, que deu vida a Bozo entre 1982 e 1987.
Não é por menos. Por trás do sorriso pintado de vermelho, havia um ator angustiado e fragmentado entre o amor pelo palco e pela família de que se distanciava à medida que fazia sucesso, e entre a fama do personagem e o próprio anonimato. Ser líder de audiência custou caro a Barreto – que pagou com dependência química, uma sucessão de polêmicas e o distanciamento do filho.
Essa história de ascensão e queda foi a inspiração para o filme Bingo – O Rei da Manhã, primeiro longa do diretor Daniel Rezende (montador de Cidade de Deus e de Tropa de Elite). Mas nem tudo é real no roteiro assinado por Luiz Bolognesi, autor do script de Elis, Como Nossos Pais e Bicho de Sete Cabeças. O texto mistura fatos verdadeiros, recursos dramatúrgicos e ecos dos anos 1980.
Para distinguir o que é verdade do que é ficção, VEJA entrevistou Bolognesi, Barreto e o coprodutor e idealizador do longa, Dan Klabin. Eles comentam 15 pontos do longa. Confira abaixo:
Amor de diretora
No filme, Augusto (Vladimir Brichta) conhece a produtora e diretora de TV Lúcia (Leandra Leal) nos testes para o papel de Bingo, palhaço americano importado pela TVP (TVS) para dar corpo à sua programação infantil. Com o tempo, a relação dos dois passa do profissional para o pessoal. Durona e evangélica, ela é o porto seguro do ator no momento em que ele se perde nas drogas e no álcool. Na vida real, Arlindo Barreto se casou com Elisabete Locatelli, produtora do programa, que também era religiosa e rígida. Ela foi a responsável por ajudá-lo no momento em que se afundou no vício. Entretanto, ela era apenas produtora, e não diretora. “Lúcia tem uma base real, mas nós a transformamos em uma diretora para que a trama ficasse mais picante, tensa e dramática. Ela não estava ligada à tomada de decisões. A gente deu uma glamourizada”, diz o roteirista, Bolognesi.
Filho da fama e do ocaso
Barreto é filho da atriz Márcia de Windsor (1933-1982), que fez sucesso na década de 1960 por seus papeis em novelas da Globo como O Sheik de Agadir e A Sombra de Rebecca. No entanto, no final da vida, ela fazia apenas papeis menores e participações como jurada no programa de Flávio Cavalcanti, o grande rival de Silvio Santos à época. “A mãe do Arlindo foi um ícone da TV, que aos poucos perdeu sua posição na hierarquia artística. Passou de realeza a desempregada”, diz o co-produtor Dan Klabin.
No filme, Augusto é filho de Marta (Ana Lúcia Torre), uma atriz que já teve seus dias de glória e agora vive do passado – e de atuações como jurada em um programa de auditório. Há um momento no roteiro em que ele entra em combate com executivos da antiga emissora da mãe, a TV Mundial (a Globo do universo de Bingo), e os expulsa de um recinto para defender Marta. O embate de fato ocorreu. Mas, diferentemente do que mostra o filme, não houve barraco.
Na sombra da ex
Arlindo Barreto foi casado com Angelina Muniz, atriz que fez diversas novelas na Globo nos anos 1980, como Vereda Tropical (1984) e Sassaricando (1987), e mais recentemente Bang Bang (2005), e continua na ativa – ela participou de Os Dez Mandamentos e está em Belaventura, ambas da Record. Ela também foi capa de três edições da revista Playboy. Nos idos da década de 1970 e 80, Angelina contracenou com Barreto em pornochanchadas como O Inseto do Amor (1980) e As Borboletas Também Amam (1979). Quando Augusto encontra a ex, Angélica, nos estúdios da TV Mundial (a Globo do filme), chega a brincar sobre isso. “Olha nós de novo juntos, agora com roupa.” Mas, diferentemente do que mostra o longa de Daniel Rezende, o ator não teve um filho com a ex-mulher, e sim com outra atriz, Zélia Diniz, não tão famosa. Angélica, personagem de Tainá Müller, é uma mistura das duas.
Tem quem queira
Depois de fazer somente pontas e papeis menores na Globo, Barreto saiu magoado da emissora. Ele ainda não sabia, mas sua vida viraria de ponta-cabeça pouco depois. Mas não houve confusão nem gritaria na despedida. A cena do filme que mostra Augusto deixando a TV Mundial de cueca vermelha é ficção.
Teste de fogo
Arlindo Barreto já fazia participações em humorísticos do SBT antes de se candidatar ao posto do palhaço que mudaria a sua vida. Nos bastidores da emissora, ouviu falar de colegas que foram escrachados nos testes para o Bozo pelos produtores gringos, donos do formato do programa infantil. Barreto resolveu se arriscar, e, assim como no filme, arrancou gargalhadas da equipe ao fazer piadas, em português e com malícia, com o produtor americano, que não entendeu nada e o aprovou. “Ele tirou sarro, mas não com aquelas palavras, com aquela contundência pornográfica”, diz Bolognesi. Barreto também não foi o primeiro Bozo, como o filme dá a entender. Foi o segundo. A primeira pessoa a interpretar o palhaço foi Wanderley Tribeck, de 1980 a 82. Tribeck também afundou no álcool e nas drogas e, da mesma forma que Barreto, hoje é evangélico.
Famoso e anônimo
O contrato com o SBT realmente proibia Barreto de revelar que ele era o Bozo, o que, para um ator que busca o sucesso, é cruel. “Foi um drama. Ele era um campeão de audiência e não podia ser reconhecido na rua”, conta Bolognesi, que, para sintetizar a situação, criou a cena em que o ator, sem maquiagem e sem fantasia, é barrado em uma premiação. O roteirista não chegou a falar com o filho de Barreto para saber se ele de fato não contava aos amigos da escola sobre o trabalho do pai. “É criação nossa.” Já o ator diz que o filho não revelava a ninguém a sua profissão, mas não por obediência ao contrato. “Se ele dissesse no colégio que era filho do Bozo, com certeza sofreria bullying.”
Estágio no circo
Percebendo a dificuldade de interpretar o Bingo, Augusto faz estágio no circo com o palhaço Aparício (Domingos Montagner), o que de fato aconteceu. “Arlindo foi para o circo aprender a ser palhaço. Alugou um trailer e ficou morando alguns meses por lá”, diz Bolognesi.
Uísque, o guru
A frase “70% é inspiração, 30% é uísque” é criação do roteirista. Barreto costumava dizer: “É preciso de 90% transpiração, 5% de fé e inspiração e 5% de saber aproveitar as boas oportunidades”. Ele podia alucinar, mas tinha ao menos um pé no chão.
Conga, Conga, Conga
Arlindo Barreto e Gretchen realmente tiveram um relacionamento, mas foi antes de ele assumir o papel de Bozo e foi mais duradouro do que a rapidinha do filme. A cena de sexo em um banheiro, portanto, é invenção. Já a participação dela no programa é real.
https://www.youtube.com/watch?v=1YtDi9Z6vaA
Estouro de audiência
O programa do Bozo foi líder de audiência no SBT. Para comemorar o feito, Barreto pediu para as crianças do auditório gritarem: “Primeiro! Primeiro! Primeiro!”. Ele também fez uma provocação ao vivo aos executivos da Globo. Tudo isso está no filme, além de uma cena em que o palhaço pisoteia uma boneca loira, uma referência clara a Xuxa – o que ninguém confirma se aconteceu.
Alô, palhaço!
Como o programa era ao vivo, o Bozo recebia ligações de crianças, que conversavam com ele e participavam de provas como a corrida de cavalinhos. Assim como em Bingo, algumas aproveitavam a oportunidade para mandar o palhaço para aquele lugar. Dan Klabin, o co-produtor, e Luiz Bolognesi, o roteirista, contam que, no processo de pesquisa para o longa, encontraram pessoas que disseram estar assistindo ao programa quando as cenas foram ao ar. Mas, diferentemente do que aparece no filme, o filho do ator nunca telefonou para o programa para reclamar de o pai esquecer seu aniversário.
Sangue no nariz
No filme, Augusto Mendes perde o emprego quando uma gota de sangue escorre do seu nariz, ao vivo. Ele havia acabado de cheirar uma carreira de cocaína no camarim. Arlindo Barreto de fato usava a droga e abusava do álcool, vícios que ele diz ter contraído depois de se separar e perder a mãe. Mas nega ter usado qualquer coisa dentro do SBT. “Consumir drogas dentro da televisão, isso eu nunca fiz”, afirma o ator, que também nega ter sido demitido. Segundo Barreto, foi ele quem pediu para sair. “Ele estava em conflito com a direção por causa do seu excesso de loucura. Mas, de fato, jamais sangrou no palco. É invenção nossa”, admite Bolognesi.
Pai e filho
Em uma das cenas mais fortes de Bingo, Augusto se embriaga na presença do filho Gabriel (o ótimo Cauã Martins). Ao ver o pai desacordado, o menino decide provar o uísque que sobrou em seu copo e passa mal. A mãe do garoto, Angélica, entra na Justiça e Augusto é proibido de se aproximar da criança até provar que está há seis meses sem beber. De fato, Barreto tinha problemas com a mãe de seu filho com relação aos cuidados com o garoto. Entretanto, de acordo com Bolognesi, a cena da criança com a bebida e a ordem judicial nunca existiram. Ele nunca foi proibido de ver o filho. “Foi um recurso de dramaturgia”, diz.
Acesso de raiva quase letal
No auge do alcoolismo, um delirante Augusto Mends, em crise por ter perdido o emprego, vê a si mesmo na TV e quebra o aparelho com a mão, ao dar um soco na tela. Ao afundar o braço no televisor, ele corta o pulso e quase morre, sozinho, em casa. Na vida real, o acidente aconteceu no banheiro e não na sala. Barreto quebrou o box, se cortou e quase morreu. “Foi um surto psicótico”, diz Klabin. Ficar entre a vida e a morte e ser acolhido pela produtora, que era evangélica, foram estímulos para o ator procurar refúgio na religião. “Foi relevante para mudar de vida. Depois disso, ele encontrou na igreja uma forma de continuar no palco”, conta Bolognesi.
Passagem do tempo
No filme, entre o momento em que Augusto Mendes começa a interpretar o palhaço Bingo e a sua demissão, o seu filho praticamente não envelhece, dando a entender tudo se passou em um período curto. No entanto, Barreto ficou na pele de Bozo por cinco anos, de 1982 a 1987. “Fizemos adaptações para ficar concentrado. Foi uma liberdade narrativa”, diz Bolognesi.
https://www.youtube.com/watch?v=cIvR3lamTgc