‘A Primeira Profecia’ é parábola sobre aborto com Sônia Braga endiabrada
Quinto filme da franquia sobre o Anticristo, estreia revigora universo com direção exemplar, repertório rico e temas bem trabalhados
Muito mudou desde que o pequeno Damien primeiro deu as caras no cinema, em 1976. Em A Profecia, o pupilo do diabo causava acidentes, suicídios, incêndios e empalações por onde passava com a mesma naturalidade com que um menino normal de sua idade tropeça numa pedra ou baba ao comer. As peripécias maléficas persistiram até a vida adulta do personagem, amadurecimento retratado em duas sequências, que então abriram alas para um telefilme, um remake em 2006 e uma série cancelada dez anos depois. Ao longo de quase cinquenta anos, os méritos do original foram gradualmente trocados por espetáculo e, como é do feitio de toda franquia, as ambições cinematográficas acabaram desfiguradas — até, como num milagre, essa maldição ser revertida por A Primeira Profecia, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 4 de abril.
Sob o comando da estreante Arkasha Stevenson — que até então havia conduzido apenas episódios televisivos —, o novo filme retoma o cânone da trilogia original, mas questiona algo que pouco interessava a seus antecessores: a mãe. Afastado do foco na influência paterna, A Primeira Profecia se passa no ano do nascimento da besta, 1971, e é protagonizado pela jovem Margaret (Nell Tiger Free), noviça que vai a Roma oficializar seu comprometimento ao hábito. Lá, ela é acolhida por um convento administrado pela sinistra Irmã Silva (Sônia Braga), e tudo aponta que uma órfã ostracizada está destinada a carregar o herdeiro das trevas.
A premissa dá vazão ao esperado para o terror de estúdio contemporâneo, claro. Criaturas nas sombras, sustos sorrateiros e ambientes escurecidos já são pré-requisitos do gênero, truques que pertencem mais ao horror sobrenatural do século XXI do que à década que o longa homenageia. Mas marcas de autoria não tardam a surpreender e resplandecer, evidenciadas de supetão já na enervante abertura do longa, subversão perversa de uma das mortes mais famosas do filme original. O tom estabelecido é apropriado: assistir à Primeira Profecia é ser surpreendido repetidamente — sim, pela narrativa, mas especialmente pela condução.
A câmera dificulta negar o domínio de Stevenson, demonstrado na composição de quadros e planos hipnotizantes que, mais que belos, expandem o escopo do trabalho. Sua mise-en-scène imediatamente o conecta a um repertório abrangente do gênero (Suspiria, O Bebê de Rosemary e O Exorcista são alguns dos paralelos mais óbvios) que não é limitado a recurso plástico, mas se torna essencial para a digestão dos temas e um diálogo rico com a época escolhida.
Afinal, as mais gritantes diferenças entre 1976 e 2024 estão fora das telas. Nos Estados Unidos, quando Damien tinha 5 anos e matava padres por aí, o aborto já era um direito federal. A garantia foi tirada dos americanos em junho de 2022 e criou uma sombra sobre qualquer gravidez maldita ficcional imaginada hoje em dia. A Primeira Profecia se refestela com a liberdade da fantasia e suas imagens aterrorizantes, mas jamais nega as origens de seu horror, sublinhando cada arrepio com as mazelas do abuso sexual e da negação do direito reprodutivo às mulheres, imaginário que o filme conecta não só a seus personagens, mas ao masoquismo cristão e até ao antigo mito de Medusa, condenada à monstruosidade após ser estuprada por Poseidon.
No centro de tudo, Tiger Free deve então fazer o malabarismo entre santidade, autonomia e perversão, trabalho que começa tímido e desemboca em crueza digna da premiada Isabelle Adjani em Possessão — a qual homenageia no clímax. Do outro lado da moeda, a antagonista Sônia Braga não deixa a peteca cair e incorpora com destreza a postura incólume da Igreja Católica.
É, porém, o próprio refino espantoso que sabota a conclusão do filme, minutos anticlimáticos que correm para encaixar o delírio de duas horas no universo estabelecido da franquia. Mesmo assim, o tropeço não é suficiente para impedir A Primeira Profecia de ser aferida como a mais ousada produção causada pelo apetite de Hollywood por mais e mais sequências. Se tais projetos continuarem a cair nas mãos de cineastas tão assertivos quanto Stevenson, ainda há esperança no mundo — e o Anticristo é detalhe.
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