Acompanhante Perfeita e mais: as robôs sensuais que expõem falhas humanas
Uma nova safra de filmes repensa as relações entre humanos e androides: eles agora ensinam, quem diria, como somos imperfeitos

Uma linda mulher desfila pelos corredores do supermercado, conduzindo o carrinho de compras como se fosse mais um acessório de seu visual. O look é composto de tiara retrô e um vestido azul-bebê que lhe confere ares de inocência. A moça chama a atenção de um pretendente que por ali passa e, na tentativa de cortejá-la, derruba uma pilha de frutas no chão. A cena remete ao primeiro encontro ideal de qualquer romance de cinema, e é o ponto de partida para o enlace entre Josh (Jack Quaid) e Iris (Sophie Thatcher) no filme Acompanhante Perfeita, em cartaz no país. Mas essa mise-en-scène, tão familiar a comédias românticas da era hipster, é enganosa. Josh é somente um consumidor em busca de um produto providencial — companhia feminina. E a bela Iris vem a ser o produto em si: uma robô que mistura os afazeres de empregada doméstica, assistente pessoal, boneca inflável e, claro, namorada.

A sequência “romântica” no supermercado é homenagem a um clássico esquecido, Esposas em Conflito (1975), primeiro longa a imaginar que androides subservientes poderiam substituir donas de casa. De lá para cá, o tema ganhou profundidade filosófica e novas nuances tecnológicas em filmes como A.I. — Inteligência Artificial (2001), em que Steven Spielberg narra a história de um menino-robô programado para amar os pais, ou Ex Machina (2014), no qual Alex Garland fala de uma androide manipulativa. No momento atual, quando a inteligência artificial entrou de vez na pauta da civilização, uma nova leva de produções capitaneada por Acompanhante Perfeita faz refletir sobre as consequências para as relações humanas da possibilidade — cada vez mais concreta — de podermos substituir companhias de carne e osso por aparelhos feitos de chips e baterias de lítio. A robô do filme dá uma pista de como isso provavelmente se dará: Iris é produzida em massa e vendida por uma big tech, como se fosse um frugal iPhone ou a nova invenção da Tesla.
A androide e outros personagens similares refletem uma questão premente: a busca humana pelo prazer do mínimo esforço por meio da tecnologia, estabelecendo uma conexão com máquinas e algoritmos que termina reformatando nossos comportamentos. Tal e qual uma Alexa, a robô informa a previsão do tempo exata a qualquer momento, e adivinha gostos e necessidades do dono de forma que nada incomode o ego dele. Sua chegada, porém, atrofia a empatia e o intelecto de Josh, assim como um carro com piloto automático livra as pessoas de saber dirigir ou o ChatGPT torna dispensáveis aprendizados como fazer pesquisa e escrever. Quando a personagem se liberta das amarras e atinge o potencial completo da própria força e inteligência, tornando-se humana em essência, fica estarrecida ao perceber todos os atalhos tomados pelo amado, que nunca teve de pensar sobre como satisfazê-la, respeitá-la, ou enxergá-la para além do próprio reflexo. Forçada à violência pelo enredo, ela então se torna heroína de ação, fazendo o público celebrar suas peripécias contra os acomodados vilões humanos.

Efeito semelhante ocorre no terror M3GAN (2022), que ganhará sequência em 2025, no qual uma boneca equipada de inteligência artificial sai do controle e toma medidas drásticas para proteger a menina de quem cuida. Propositalmente cômico, o longa diverte e estimula simpatia pela assassina, ao fazê-la vitimar humanos frios e egocêntricos, que já deixaram os próprios interesses ofuscarem sua compaixão. Ao mesmo tempo, ela é um símbolo dos aparatos colocados entre crianças e seus guardiões, como as telas de tablets e celulares utilizados para hipnotizar e domar os pequenos.
Em suma, enquanto boa parte da ficção sobre androides e inteligência artificial explorou os temores da humanidade em relação à perda de controle sobre as máquinas, esses novos retratos impõem um debate diverso: o problema não são as máquinas, mas o egoísmo e a inépcia humanos nas relações. Até o suspense trash Alice, lançado no final de 2024, contribui ao diálogo ao transpor clichês de Atração Fatal (1987) a uma robô doméstica com a cara de Megan Fox. Após sofrer alterações em sua programação, a personagem se torna obcecada pelo pai da família que a possui e recorre à sedução e a agressões para substituir sua esposa humana, se aproveitando de desejos que o homem jamais revelaria a outro ser da própria espécie, mas que se sente confortável em saciar com um corpinho de metal.

Nem tudo, porém, é pessimismo nessa seara. O drama alemão O Homem Ideal (2021) fala de uma antropóloga forçada a avaliar quão humanos são androides produzidos com o mesmo intuito daqueles de Acompanhante Perfeita. A relutância da personagem ao experimento e seu senso crítico, porém, resultam em outra dinâmica, na qual o parceiro-robô é forçado a evoluir e desobedecer ordens para criar uma relação genuína. Com isso, ele deixa de lado a perfeição de fábrica e torna-se algo mais próximo de nós, mortais. Na era dos prazeres artificiais, talvez até seja possível humanos e robôs evoluírem juntos.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932