Adaptação de ‘Persuasão’ alerta: deixem a pobre Jane Austen em paz
Protagonizado por Dakota Johnson, filme da Netflix se perde em tramas mal desenvolvidas e anacronismos toscos ao verter livro da autora para dias de hoje
Em A Abadia de Northange, Jane Austen (1775-1817) é eloquente ao proclamar que “a pessoa que não sente prazer com um bom romance, só pode ser intoleravelmente estúpida.” Há certa verdade no que ela diz: generalizações à parte, quem torce o nariz para qualquer trama sobre paixão deve ser, de fato, muito amargo – a não ser que estejamos falando de um mau romance. Infelizmente, é o caso de Persuasão, adaptação do livro de Austen lançada nesta sexta-feira, 15, na Netflix – que, parafraseando a autora na obra dilacerada, é metade agonia e metade (des)esperança. Se estivesse viva, é provável que a inglesa sentisse muita coisa assistindo ao longa – raiva, humilhação, calafrios. Mas nada nem sequer parecido com prazer ou esperança.
Protagonizado por Dakota Johnson, badalada desde 50 Tons de Cinza, o filme tenta adaptar o romance de Austen para o século XXI, mas acaba com um pé nos filmes de época e o outro nas dramédias milenial, amargando a irrelevância de não ser nem uma coisa, nem outra. Dakota, aliás, é uma incongruência por si só. Seu corte de cabelo em camadas com franjinha desgrenhada pode ser encontrado facilmente em uma pasta de tendências do Pinterest, mas dificilmente seria verossímil na Inglaterra de 1800. Isso, é claro, não é só culpa da atriz, que faz um arroz com feijão insosso com o que tem em mãos, mas de quem decidiu escalá-la para o papel e apostar na quase ausência de caracterização para modernizar a personagem. Tirando os vestidos de época, Dakota é ela mesmo – a personificação da mulher millennial moderninha dividida entre a meiguice e empoderamento.
Visual à parte, os elementos básicos do livro estão ali: oito anos antes, Anne fora dissuadida de casar-se com seu amado Capitão Wentworth, que, embora charmoso e apaixonado, era o que hoje os ricos de nariz em pé chamariam de pé-rapado. Como uma punição do destino, ele volta à cidade endinheirado, e ela, que nunca esqueceu a paixão, percebe que dispensá-lo em prol das convenções sociais foi um erro. É com esse pano de fundo que Austen alfineta a aristocracia inglesa de sua época, tecendo comentários ácidos sobre a obsessão por status e a superficialidade de muitas relações. Nas telas, no entanto, tudo o que se vê é a melancólica Anne vertida em uma mulher expansiva que quebra a quarta parede com uma frequência irritante (em uma emulação fracassada de Fleabag e Enola Holmes), enquanto mescla monólogos de 1800 a bordões atuais da internet .
Não que seja impossível equilibrar-se no meio-fio: Bridgerton, uma das fontes das quais o longa parece beber, é magistral ao mesclar os visuais pomposos e impasses do passado a discussões atuais. Assim como o sucesso de streaming, Persuasão assume o anacronismo ao retratar atores brancos e não-brancos em pé de igualdade no nada liberal século XIX, adicionando uma lufada bem-vinda de diversidade às tramas de época, mas toda a veia crítica se perde em um emaranhado de histórias mal desenvolvidas que carecem do carisma de Bridgerton. Com uma frase aqui e outra acolá, os roteiristas até tentam levantar discussões como as obrigações impostas às mulheres, mas tanto os romances quanto o viés social ficam tão superficiais que não faria diferença assistir ao filme completo ou deixá-lo rodando de fundo enquanto se completa alguma outra tarefa. Melhor seria, daqui pra frente, deixar Jane Austen descansar em paz.