Sob a luz desorientadora de um centro cirúrgico, Marilyn Monroe está com as pernas em posição de exame ginecológico, diante de um médico digno de conto de terror gótico. Ele e os enfermeiros olham para as partes íntimas da atriz, antes de realizar um aborto. Estrela em ascensão no cinema, prestes a atuar em um filme que não condiz com a gravidez, ela se arrepende de ter aceitado o procedimento sugerido pelo empresário. Marilyn tenta fugir, mas é capturada nos corredores labirínticos do hospital. O mesmo cenário volta a assombrá-la quando, em outra ocasião, é arrancada da própria casa e já chega nocauteada por drogas fortes à sala de cirurgia para interromper, contra sua vontade, outra gestação. Ambas as cenas de Blonde (Estados Unidos/2022), filme que chega no dia 28 à Netflix com a cubana Ana de Armas no papel da diva, são fictícias, baseadas principalmente em rumores — sabe-se que Marilyn sofreu três abortos espontâneos. A função das cenas do filme do neozelandês Andrew Dominik não é retratar fatos, mas uma ideia: símbolo sexual incontornável dos anos 1950, Marilyn Monroe, nome artístico de Norma Jean (1926-1962), teve ao longo de sua curta vida pouquíssimo controle sobre o próprio corpo — patrimônio que a tirou da pobreza e lhe deu fama, mas foi, por fim, sua ruína.
Baseado no livro de mesmo nome de Joyce Carol Oates publicado em 1999, Blonde descola Marilyn de adjetivos comumente atrelados a ela, como problemática, deprimida e viciada. Nesse conto de fadas infeliz, a culpa pelas agruras da atriz e por sua morte precoce, aos 36 anos, de overdose acidental, é compartilhada com o sistema machista da indústria que a colocou num pedestal — para depois assistir à sua queda em câmera lenta. Beirando três horas de duração, a cinebiografia opta pela alegoria ao fazer uma análise emocional do furacão Marilyn, persona sensual e oposta à doçura introvertida de Norma Jean. O recorte não preza pela verdade, muito menos pela cronologia. Mesmo assim, reflete com verossimilhança aflitiva os altos e baixos da biografada.
Essa forma de olhar simbólico se revela uma opção pertinente no retrato de personalidades trágicas incansavelmente exploradas pelo cinema. A princesa Diana é uma delas. Sua dramática passagem pela monarquia britânica foi narrada como um thriller angustiante em Spencer, com Kristen Stewart na pele da ex-esposa do príncipe (agora rei) Charles. Ambientado no Natal de 1991, o roteiro expõe sensações universais, como o horror de ser incompreendido e ignorado, e a solidão daqueles que não se encaixam. No musical Elvis, com Austin Butler no papel-título, o uso de licenças factuais também ajuda a compor um retrato original do ídolo. A produção do cineasta Baz Luhrmann investiga o fascínio provocado pelo cantor, mas enfatiza o momento histórico de segregação racial dos Estados Unidos — barreira que Elvis ajudou a minar.
Blonde opta por ressaltar a dor da musa sob uma óptica feminista. Vivendo entre lares adotivos após sua mãe ser internada com esquizofrenia, Norma sofreu abusos sexuais — sina que prosseguiu na vida adulta em Hollywood. À eterna ironia (machista, decerto) de que a loira se beneficiou do papel de mulher-objeto para subir na vida, o filme responde mostrando quão rentável ela foi para seu estúdio na época, a Fox, que explorou sua imagem à exaustão sem pagar por ela de forma justa. A tentativa do filme de exaltar Marilyn como símbolo da opressão masculina, porém, escorrega no básico: toda a vida da atriz é retratada em função de seu relacionamento com os homens. A começar pelo pai que a abandonou e que serve como um narrador em momentos-chave através de cartas. Maridos, namorados e amantes surgem como esperança de dias melhores e apoios para preencher o vazio. Um recurso poético — mas piegas — faz com que ela escute os bebês que perdeu. Ainda que falho, Blonde dá sua ajuda na tarefa de decifrar a esfinge Marilyn — e mostra que ela está longe de descansar em paz.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808
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