O diretor e roteirista Ishirō Honda (1911-1993) cresceu em uma comunidade budista pacata no Japão. Seu pai era abade de um mosteiro, assim como seu avô. Desde cedo interessado em ciência e artes, Honda sabia que seu futuro não seria em um templo – mas também não imaginava o turbilhão pelo qual passaria. Recrutado para lutar na II Guerra Mundial, ele testemunhou os horrores do front, chegou a ser prisioneiro na China e, ao longo de sua vida, foi atormentado por pesadelos envolvendo o conflito. Dessa angústia, criou um temido monstro, ninguém menos que o Godzilla, figura que se tornou um marco na história do cinema – e que ainda hoje, em 2023, conquista espectadores.
A estreia do monstrengo se deu em 1954, no filme Godzilla, dirigido e roteirizado por Honda. Desde então, o personagem já foi retratado em dezenas de longas, videogames, livros e séries de TV – conquistando, especialmente, Hollywood. Recentemente, a Apple TV+ lançou Monarch – Legado de Monstros, série que conecta três famílias em gerações distintas na caça aos kaijus – nome japonês criado por Ishirō Honda para designar animais perigosos e gigantescos. O programa é parte também da saga de filmes americanos que ressuscitou Godzilla, em 2014, seguido por outros grandalhões como King Kong e Mothra (uma enorme mariposa). Para completar 2023, o personagem icônico retorna aos cinemas esta semana com o filme Godzilla Minus One, que vem somando elogios por onde passa.
A produção japonesa, com direção de Takashi Yamazaki, é talvez uma das que mais se aproxima das angústias iniciais que deram origem ao famoso monstro. Sob as feridas das bombas atômicas, que devastaram as cidades de Hiroshima e Nagasaki, Honda criou o Godzilla como um efeito colateral da radiação nuclear. Mistura de diferentes seres pré-históricos, o monstro desperta e sai das profundezas para assolar o ainda machucado Japão. Até mesmo a textura das escamas que cobrem o grandalhão está ligada ao evento dramático: sua aparência remete às queloides formadas na pele dos sobreviventes de Hiroshima.
Seu papel histórico e simbólico, desde então, é fonte de diversas teorias. A começar pela associação direta com os Estados Unidos, então a grande besta que assolava o Japão. Godzilla poderia, também, remeter ao passado do país, que se recusava a acertar as contas com seus erros, como o domínio ferrenho da era imperial até a ligação com os nazistas alemães. Mais recentemente, o bichão virou metáfora para desastres naturais ecológicos. As razões para sua popularidade e longevidade, porém, desafiam a lógica. Em pleno século XXI, Godzilla continua terrivelmente vivo – e pronto para conquistar mais fãs ansiosos por vê-lo em ação.