Corrida do Oscar lança luz sobre uso da IA em Hollywood
Revolução se impõe como nova realidade desafiadora — e irreversível — na indústria do entretenimento

Maior premiação do cinema mundial, o Oscar reflete em seus indicados e vencedores tendências da indústria cinematográfica. A premiação de 2025, que ocorre neste domingo, 2, será lembrada por iluminar um assunto até hoje cercado de tabus: o uso de inteligência artificial nas produções de Hollywood. Donos de, respectivamente, treze e dez indicações, Emilia Pérez e O Brutalista dividiram opiniões ao usar IA para aprimorar aspectos técnicos. No caso do controverso filme francês, a tecnologia serviu para aperfeiçoar o canto de Karla Sofía Gascón, enquanto O Brutalista aplicou a ferramenta para corrigir os sotaques de Adrien Brody e Felicity Jones em cenas em que os atores falam húngaro. Ambos os filmes, inclusive, utilizaram o software ucraniano Respeecher para os ajustes. O uso, como esperado, foi recebido com preocupação e até rejeição por parte da indústria, que teme que a tecnologia comprometa a autenticidade da arte do cinema e afete negativamente sua cadeia produtiva.
Criada na década de 1940 e batizada como é conhecida hoje em 1956, a inteligência artificial surgiu cercada de receios, e demorou a se consolidar. Na última década, no entanto, o tema — que até então parecia promessa distante da ficção científica — virou pauta recorrente, e uma das principais preocupações de trabalhadores que temem perder seus empregos para máquinas e algoritmos. Um relatório recente da consultoria National Research Group apontou que 42% dos profissionais do entretenimento americano acham que a IA vai prejudicá-los, enquanto 32% acreditam que a tecnologia pode beneficiá-los. A IA deixou de ser mais uma ideia abstrata do Vale do Silício e tornou-se uma realidade incontornável em diversos segmentos, incluindo o cinema. Hoje, ela pode ser (e já é) utilizada, em maior ou menor grau, em todos os estágios de um filme, do desenvolvimento à pós-produção. Entre os exemplos concretos recentes, além da alteração de vozes nos indicados ao Oscar, há também o rejuvenescimento de Tom Hanks no longa Aqui, que transformou o ator em jovem num passe high-tech de mágica.

O alcance das novas técnicas é incalculável: elas podem auxiliar na criação de roteiros e trailers, revisar textos, participar da elaboração de campanhas de marketing e até reviver ou clonar rostos e vozes, como a recriação da fala de Mark Hamill na série O Livro de Boba Fett. “A IA está balançando várias indústrias. É inevitável e precisamos saber como trabalhar com ela”, explicou a VEJA Ofir Krakowski, CEO da Deepdub, empresa israelense de dublagem e edição de voz com IA. “Os consumidores querem mais conteúdo de forma mais barata, e os estúdios precisam cortar custos”, completa ele. O especialista defende a ideia de que a tecnologia facilita processos, mas a maioria dos conteúdos seguirá sendo feita por humanos nos próximos anos, com a IA servindo como mais uma tecnologia de pós-produção, como a computação gráfica.
Apesar de ser uma realidade, o avanço assusta a indústria, e foi uma das principais pautas da greve de atores e roteiristas em 2023. Eles reivindicaram uma regularização mais estrita da tecnologia, com a proibição do uso da voz ou imagem de atores sem autorização prévia. Nomes como Nicolas Cage e Keanu Reeves já vetaram em contrato o uso de suas vozes e imagens pelas IAs.

Ao longo da história, diversas tecnologias mudaram radicalmente a forma de fazer filmes (leia abaixo). No início do século XX, a chegada do som aos filmes fez o cinema mudo cair em desuso e eliminou as orquestras nas sessões. A mudança fez com que ícones como Charles Chaplin tivessem de se atualizar, e muitos não sobreviveram à nova era. Anos depois, a popularização do cinema em cores com tecnologias como o Technicolor alterou as habilidades necessárias para edição, e jogou para escanteio técnicas de tingimento de filmes. A invenção do CGI, nos anos 1950, fez boa parte dos efeitos práticos cair em desuso, eliminando cargos relacionados às especificidades técnicas das cenas, mas abrindo as portas para especialistas em computação gráfica.
Mesmo assim, os diretores puristas não deixaram de existir: o brasileiro Walter Salles, por exemplo, preferiu fechar uma rua no Rio e alugar carros antigos a usar CGI para as cenas de época de Ainda Estou Aqui, indicado a três categorias no Oscar. A inteligência artificial, portanto, é mais um capítulo na longa lista de mudanças vividas pelo cinema. Segundo relatório global da The Business Research Company, o mercado de IA na mídia e no entretenimento cresce 27% anualmente, e deve chegar a 58,6 bilhões em 2029. Diante disso, o Oscar estuda tornar obrigatórios alertas que avisem o espectador (e seus votantes) de que um filme fez uso de IA. A tecnologia deu mais um salto de consequências profundas — e os desdobramentos desse filme ainda estão por vir.
Revoluções que abalaram o cinema
Ao longo da história, novas tecnologias mudaram a arte de fazer filmes

Cinema falado — 1927
O advento da voz na tela provocou um rearranjo que obrigou astros da era muda como Charles Chaplin, de Tempos Modernos, a se adaptar ou sumir

Nascimento do CGI — 1958
A sigla designa os efeitos visuais, recurso que surgiu de forma quase artesanal em Um Corpo que Cai, de Hitchcock, e chegou ao auge com a computação

Imagens coloridas — 1939
Consagrada em O Mágico de Oz, a inovação do Technicolor teve impacto brutal da cenografia aos figurinos, afetando toda a cadeia de produção de Hollywood
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933