De O Bebê de Rosemary a Imaculada, o cinema reage às proibições do aborto
Uma nova e polêmica leva de filmes de terror usa histórias de gravidez indesejadas e misteriosas como ponto de partida para falar do tema
Cecilia (Sydney Sweeney) só queria servir a Deus numa Itália bucólica, muito diferente de seu berço original, os Estados Unidos — mas um inesperado mal-estar muda tudo. Mesmo virgem, ela está grávida. Sem sexo ou a visita de um arcanjo, a jovem religiosa não sabe como a concepção ocorreu e se assusta com o ser misterioso que cresce em seu ventre. Não demora para que ela seja elevada ao posto de Virgem Maria reencarnada por suas colegas de hábito. Pelos preceitos da fé, ela será obrigada a ter o bebê e a criá-lo como o novo Messias, mas indícios suspeitos evidenciam que não há nada de divino nessa concepção. Na verdade, a jovem está no centro de uma conspiração macabra. A trama do filme de terror Imaculada (Immaculate; Estados Unidos; 2024), em cartaz nos cinemas, carrega cacoetes clássicos do gênero — freiras sacrílegas, reviravoltas e sangue abundante —, mas é nos horrores mundanos que o roteiro ganha força e, de fato, assusta: estão ali a perda de controle sobre o próprio corpo, a alienação sustentada por autoridades e o detrimento da saúde da mulher a favor da viabilidade de sua gestação.
O Bebê de Rosemary – Ira Levin
Trata-se de medos enfrentados por mulheres ao redor do mundo — e, desde junho de 2022, também por americanas que perderam a proteção constitucional do direito ao aborto. As analogias do filme com o mundo real não são sutis. Segundo o cineasta Michael Mohan e Sweeney — também produtora —, a interpretação da mensagem por trás do longa fica a cargo do espectador: mas a campanha de marketing pegou carona na polêmica. Nos Estados Unidos, as reações de conservadores se tornaram slogans de divulgação, a exemplo dos protestos que acusaram o filme de ser “uma blasfêmia satanista, feminista, pró-aborto e antivida” e que “degrada cristãos e caçoa de Maria”. O resultado: Imaculada teve o melhor fim de semana de estreia da distribuidora.
O Exorcista – William Peter Blatty
O longa não se resume à provocação barata, nem está sozinho — pelo contrário, engrossa uma onda do horror atual que responde, de forma positiva ou negativa (veja abaixo), à revogação do aborto nos Estados Unidos, onde catorze estados baniram o procedimento e outros sete reduziram a janela de tempo em que ele é permitido.
Evil Dead: A morte do demônio – Bill Warren
Não é de hoje que a instabilidade da legislação pró-aborto do país influencia Hollywood — e nenhum substrato foi tão fértil quanto o terror. Às vésperas do caso Roe v. Wade, que levou à legalização da interrupção da gestação no país em 1973, o incontornável O Bebê de Rosemary (1968) já representava a perda de liberdade de uma dona de casa grávida, manipulada por seus vizinhos e marido a não questionar a gestação suspeita — que resulta num “adorável” demônio. Em 1976, outro clássico, A Profecia, entrega a um casal um bebê que, na verdade, é o anticristo. Neste ano, o intrigante A Primeira Profecia chegou aos cinemas mostrando a origem da criança: na trama, outra noviça americana na Itália enfrenta uma gestação forçada (há ainda uma assustadora Sônia Braga no elenco). Tão aterrorizante é a mão da diretora Arkasha Stevenson, que elaborou cenas chocantes, entre elas, a de um parto explícito em que, no lugar de um bebê, uma mão demoníaca sai da gestante. Para a cineasta, o momento é crucial no retrato do “horror físico”, numa tentativa de mostrar as dores da gestação advinda de um estupro e da falta de autonomia corporal.
Nem todas as obras, porém, mostram-se pró-aborto. Lançamentos como O Exorcista: o Devoto e A Morte do Demônio: a Ascensão, ambos de 2023, punem personagens que cogitam interromper a gravidez. O interesse na questão é tanto que, no segundo semestre, um ciclo se fecha e volta ao universo de Rosemary com o lançamento da sequência Apartment 7A, sobre mais um encontro dos temíveis vizinhos com uma jovem fértil. Pelo viés dessa safra de filmes, o chamado milagre da concepção se transforma num drama assustador.
Metáforas polêmicas
Novos filmes usam o aborto como ponto de partida para falar de liberdade — ou maldições
Swallow
Neste terror psicológico de 2019, uma dona de casa grávida engole objetos lacerantes, numa tentativa desesperada de retomar o livre-arbítrio.
O Exorcista: O Devoto
O longa de 2023 foi criticado pela trama na qual um homem opta pela vida da esposa em vez da filha em um parto letal e acaba amaldiçoado por um demônio possessor.
A Morte do Demônio: A Ascensão
Moderninha, Beth (Lily Sullivan) engravida sem querer no filme de 2023. Ela é convencida a manter o bebê, apesar de tentações demoníacas para que aborte.
A Primeira Profecia
Recém-chegada à Itália, uma noviça americana tem de proteger uma pré-adolescente de freiras e padres que querem inseminá-la com o anticristo no longa de 2024.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895