Efeito Oscar: o desafio do cinema nacional após êxito de Ainda Estou Aqui
O Brasil fez história — e, a exemplo de outros países, tem uma janela de oportunidade para alavancar como nunca a indústria do cinema

Ao subir no palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, no último domingo, 2, o cineasta Walter Salles teve um gostinho nunca antes permitido a um brasileiro: o de discursar na condição de vencedor da estatueta máxima do cinema, na categoria de filme internacional, pelo sucesso Ainda Estou Aqui. O diretor dedicou o troféu a Eunice Paiva, ativista e viúva de Rubens Paiva, que foi assassinado por agentes da ditadura militar em 1971, drama retratado no longa nacional que recebeu três robustas indicações. Homenageou também Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, “as duas mulheres extraordinárias que deram vida a ela”. Nem a derrota da fenomenal Fernanda para a novata Mikey Madison, de Anora, calou o grito digno de vitória na Copa que estava entalado na garganta dos brasileiros desde os anos 1990, quando Central do Brasil, do mesmo Salles, perdeu o Oscar. As celebrações foram ouvidas das arquibancadas da Sapucaí, em meio aos desfiles das escolas de samba cariocas, às ruas do Pelourinho, em Salvador. Máscaras com o rosto de Fernanda Torres proliferaram entre os foliões. Mas a cena de maior simbologia dessa conquista inédita transcorreu na própria premiação: celebridades hollywoodianas aplaudiam de pé o cineasta — que recebeu a honraria em nome do país, como dita a regra da categoria — e levantaram-se para mais palmas quando, já com a cobiçada estatueta em mãos, ele deu um abraço emocionado em Fernanda na plateia.
A festa foi o final de uma campanha exitosa, que impressionou pela dedicação impecável da atriz e de toda a equipe de Ainda Estou Aqui para sensibilizar os votantes da Academia. Mas a conclusão da jornada do filme também marca o início de uma nova e estimulante etapa para o cinema nacional. Toda vez que um país à margem do poderoso cinturão da indústria do cinema americano inscreve seu nome no Oscar, é como se suas produções obtivessem um certificado de maioridade aos olhos de um mercado bilionário global. Os casos de países como Argentina, México e Coreia do Sul — que triunfaram na “Copa do Oscar” antes do Brasil — ensinam como aproveitar essa deixa para ampliar o alcance e a estatura da cinematografia nacional (leia o quadro).

O primeiro efeito disso, claro, é o aumento do prestígio internacional dos talentos e realizadores brasileiros. Ao levar a estatueta dourada para casa, os premiados sobem vertiginosamente de patamar na indústria, ganhando respeito e visibilidade — combinação que costuma ser vertida em convites quentes lá fora. “Com certeza esse Oscar vai abrir portas para nossos talentos”, diz Rodrigo Teixeira, produtor de Ainda Estou Aqui. “O Brasil sempre fez cinema de qualidade. Agora, entramos em um novo ciclo.” Antes mesmo da vitória, o Oscar deu um empurrão valioso ao setor do audiovisual dentro e fora do país. A começar pela bilheteria de Ainda Estou Aqui, que bateu 30 milhões de dólares ao redor do mundo e se tornou o filme nacional mais visto pelos americanos nos cinemas até hoje. Surfando a “onda brasileira”, títulos antigos ganharam novo fôlego. “Uma nova geração descobriu nossos filmes: viram pela primeira vez Central do Brasil, Lisbela e o Prisioneiro, Terra Estrangeira”, comemorou Selton Mello numa coletiva de imprensa em Los Angeles, enumerando produções que integram seu currículo e o dos colegas no filme premiado.
Ele e Fernanda Torres já sentem o impacto positivo de tanta exposição. Selton acaba de rodar seu primeiro filme americano, um remake cômico do terror trash Anaconda, com Paul Rudd e Jack Black no elenco. Aclamadíssima com a vitória no Globo de Ouro e convertida em rosto pop durante a campanha pelo Oscar, Fernanda fechou contrato com uma agência de talentos americana, que vai mediar possíveis projetos no exterior. “Ela está numa posição em que vai poder escolher o que fazer fora do Brasil”, aposta Teixeira, que prevê ainda mais oportunidades internacionais para a equipe técnica do filme.

Esse processo de descoberta de um país graças ao Oscar é muito bem-vindo — mas os casos de outras nações que viveram o mesmo momento de frisson no passado mostram que é preciso bem mais para que ele passe de modismo a um fenômeno duradouro e sustentável. Quando faturou seu primeiro Oscar, no longínquo 1986, pelo drama A História Oficial, o setor audiovisual da vizinha Argentina já exibia um vigor criativo notável — e que se expandiu por meio de uma teia de produtoras locais e parcerias com estúdios americanos. Quando roubou a cena no Oscar de 2020 com o incomum filme Parasita, de Bong Joon-ho, a Coreia do Sul nada mais estava fazendo que colher os frutos de um alentado processo de investimento na sua indústria de filmes e séries.
De lá para cá, o soft power sul-coreano, a capacidade de um país transformar seus valores em produtos culturais rentáveis globalmente, se expandiu de maneira extraordinária. Ainda que numa escala mais modesta diante da poderosa linha de produção do país asiático, o Brasil entrou em viés de alta em Hollywood e afins com o triunfo de Ainda Estou Aqui. “Não é só um filme que está sendo reconhecido, é toda uma cultura”, disse Salles após ganhar o prêmio. “É a literatura, é a música brasileira.”

Outro país no qual o Brasil pode se espelhar é o México. Vizinho dos Estados Unidos, o país é um grande exportador de talentos para Hollywood e Europa. Os cineastas mexicanos Guillermo del Toro, Alfonso Cuarón e Alejandro G. Iñárritu se tornaram grifes e somam, sozinhos, onze vitórias no Oscar — os três, aliás, já levaram o prêmio na categoria de melhor direção. A exemplo da Argentina, o México tinha um setor devidamente estabelecido quando chegou a vez da vitória do filme Roma (2018), o primeiro a levar a categoria do Oscar internacional. Num passado recente, o Brasil chegou perto de algo parecido, mas sem a mesma força e persistência. Com o sucesso de Central do Brasil (1998) e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, Hollywood abriu as portas para os brasileiros — mas manteve o controle criativo, podando a autonomia dos cineastas, que voltaram frustrados para casa. Para os atores, o campo desde então tem sido mais frutífero. Alice Braga e Seu Jorge, ambos de Cidade de Deus, e Wagner Moura, impulsionado por Tropa de Elite, continuam firmes nas suas carreiras em Hollywood.
Nos debates sobre como estimular a ascensão em modo contínuo de uma indústria do cinema, uma questão polêmica sempre é inevitável: qual o papel do Estado na indução dela? Se os produtores argentinos tiveram de se aliar à iniciativa privada cedo em razão da eterna falência estatal, e a Coreia do Sul fez da expansão mundial do setor um projeto estratégico do país, o cinema brasileiro por muito tempo provou do sabor ambíguo da mão amiga do Estado. A dependência de financiamento oficial, especialmente para produções mais autorais, era tão alta até os anos 1980 que o cinema sofreu um apagão quando, em 1990, o governo Collor fechou a Embrafilme, a empresa estatal que financiava os longas feitos por aqui.

A chamada Retomada, alguns anos depois, mostrou o óbvio já visível em outros lugares: para uma indústria em formação, incentivos como os das leis Rouanet e do Audiovisual por vezes são necessários. Mas o pulo do gato, provam também as realidades mais bem-sucedidas, está em se emancipar do dinheiro público por meio de associações sólidas com a iniciativa privada. Nos últimos anos, parcerias privadas que vão de gigantes de Hollywood como a Disney à Netflix e coproduções com outros países se revelaram um modelo de negócios florescente no país. Esse desenvolvimento, às vezes, requer também certo empurrão de políticas públicas. O Brasil tem forte parceria oficial com a França na área e, recentemente, o Ministério da Cultura firmou novos acordos de coprodução com o mercado asiático, o que vai injetar verba no setor e incentivar o intercâmbio. “O impacto econômico que nossa atividade traz para o país é imenso”, diz Debora Ivanov, sócia da Gullane, uma das maiores produtoras do país. Um estudo da Oxford Economics apontou que o impulso do audiovisual na economia brasileira foi de 55,8 bilhões de reais em 2019. “A visibilidade do Oscar deve atrair investidores, que vão ficar mais confiantes em apostar no cinema nacional”, diz a produtora. Há muito trabalho ainda a ser feito — o Oscar é só um belíssimo começo.
O efeito Oscar
Como a estatueta mudou a vida de profissionais e do setor em vários países

Argentina
As duas vitórias, para A História Oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos (2009), ajudaram os hermanos a estabelecer uma indústria prolífica e respeitada, com tramas cotidianas aliadas a fundos sociais e políticos

México
Foram nove indicações ao Oscar de filme internacional até a vitória do país com Roma (2018). Por outro lado, as coproduções com os Estados Unidos deram 29 estatuetas de outras categorias para profissionais mexicanos

Coreia do Sul
Fenômeno incomparável, Parasita (2019) levou quatro Oscars e aumentou o passe do diretor Bong Joon-ho em Hollywood. A conquista reforçou o soft power sul-coreano, que exporta com louvor sua produção cultural para o mundo
Com reportagem de Mariane Morisawa, de Los Angeles
Publicado em VEJA de 7 de março de 2025, edição nº 2934