‘El Conde’: Pinochet vira um vampiro em alegoria incômoda do autoritarismo
Eleito o melhor roteiro no Festival de Veneza — e cotado para o Oscar 2024 —, o longa transita entre o humor e a fantasia
Augusto Pinochet está desolado. Após governar o Chile em uma ditadura sangrenta entre 1973 e 1990, o general ganhou fama por um motivo que lhe desagrada. Não, não é a alcunha de assassino de que se ressente: afinal, segundo sua lógica pérfida, um soldado tem o direito de matar. O que o chateia profundamente é ser tachado de corrupto. “Matei centenas de comunas. Mas serei chamado de ladrão pelo resto da vida”, diz um indignado Pinochet, contrapondo causa e efeito para as acusações: ora, se no caminho da barbárie ele enriqueceu de forma ilícita, nada mais justo — pois teria salvado o país da “anarquia esquerdista”. A ironia satírica de alta voltagem conduz O Conde (El Conde, Chile, 2023), estreia da Netflix criada pelo aclamado cineasta chileno Pablo Larraín. No filme, Pinochet é não só o ditador que deixou um rastro de destruição no Chile, mas algo mais um tanto fantasioso: é também um vampiro de 250 anos, ainda vivo após ter forjado sua própria morte em 2006 — ano em que o Pinochet da vida real pereceu, aos 91 anos. Ao ver sua fama de herói ser manchada, ele decide bater as botas de vez. Para isso, deve parar de se alimentar de sangue humano — um hábito que se revela difícil de largar.
Eleito o melhor roteiro no Festival de Veneza — e cotado para o Oscar 2024 —, O Conde transita entre o humor e a fantasia guiado por uma metáfora indigesta: a de que o autoritarismo está à espreita, vivo e pulsante, buscando brechas rumo ao poder. Não à toa, a produção estreou em um momento capcioso para o Chile: diante do aumento de extremistas que exaltam Pinochet, o filme entrou em cartaz por lá em 11 de setembro, data que marcou os cinquenta anos do golpe do general contra o presidente Salvador Allende (1908-1973). “Pinochet nunca enfrentou a Justiça e essa impunidade o fez eterno, o transformou em um vampiro”, disse Larraín no festival.
Ironizar opressores é uma missão perigosa, que demanda tato, ao tocar em feridas dolorosas, e também equilíbrio, para rir do absurdo sem deixar que esses personagens sejam isentados de seus crimes. Tal vertente da ficção vira e mexe é testada por cineastas que voltam seus holofotes para Adolf Hitler (1889-1945). A começar por O Grande Ditador (1940), clássico de Charlie Chaplin que causou mal-estar em plena II Guerra — e deu início à derrocada na carreira do humorista. Quase oito décadas depois, em 2019, a comédia Jojo Rabbit incomodou ao retratar um garoto da Juventude Hitlerista que tinha o ditador como seu amigo imaginário — história que, apesar de crítica, foi confundida com uma propaganda pró-nazismo por sua sutileza. Mais desconforto ainda causou o alemão Ele Está de Volta, de 2015, por seu pé na realidade: o filme baseado em um livro imaginava como seria se Hitler acordasse no século XXI. A produção misturou ficção e cenas documentais, com o ator Oliver Masucci passeando pelas ruas com o uniforme do nazista, e assustou ao mostrar o interesse de transeuntes que pediam selfies ao Hitler fake — ou pior, saldavam-no com a mão em riste.
Para evitar armadilhas e más interpretações, O Conde mira no humor ácido chocante, além das metáforas explícitas — como, claro, o gosto de Pinochet por sangue. Ajuda também a notável criatividade e experiência de Larraín para filmar biografias históricas voltadas mais para uma ideia do que para um personagem em si — caso de Neruda (2016), sobre a perseguição política ao poeta chileno, e Spencer (2021), que retrata o clima de pesadelo que cercava a princesa Diana. Em O Conde, Pinochet definha em um casarão isolado e recebe seus filhos para falar da herança. A papelada confusa leva à contratação de uma contadora — a família, porém, não sabe que se trata de uma freira disfarçada que planeja exorcizar o vampirão. Bela e astuta, a jovem reacende em Pinochet o desejo pela vida — uma alusão discreta, mas precisa, à relação próxima do autoritarismo com a religião.
Ao criticar o ditador, e especialmente a narrativa que relativiza a corrupção e a violência, Larraín atesta que o riso é uma forma eficiente para expor aquilo que a cacofonia da vida diária às vezes eclipsa: o horror real existe, e nunca deve ser esquecido.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859
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