“Dizer como se sente é a marca de uma boa submissa”, diz Allen (Scott Cohen) a Ann (Joanna Arnow), parceira com a qual mantém relações sadomasoquistas há quase uma década. Se fosse na vexatória saga Cinquenta Tons de Cinza, que tornou o fetiche popular no cinema, a conversa se daria em um quarto vermelho, numa cobertura de luxo, com os participantes seminus cercados por chicotes e apetrechos curiosos. Não é o que acontece na comédia de erros Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou (The Feeling that the Time for Doing Something Has Passed, Estados Unidos, 2023), em cartaz nos cinemas. Na cena, o casal discute a relação em cenário nada libidinoso: uma chamada de vídeo on-line, na qual a jovem protesta por atender aos desejos do amante já tarde da noite, mas não ser retribuída à altura.
Cinquenta tons de cinza – E. L. James
Irônico e criativo, o filme de título imenso conquistou a crítica no Festival de Cannes ao narrar as ambições românticas de uma mulher submissa. O roteiro e a direção são da própria protagonista: Joanna Arnow descreve a trama como autoficção, inspirada em suas experiências com a comunidade encapsulada pela sigla BDSM (bondage, disciplina, sadismo, masoquismo). Assim, ela almeja diminuir os mitos que cercam os envolvidos. “O sadomasoquismo é um tipo de faz de conta, como teatro musical ou RPG, e seus adeptos notam o humor das situações”, disse Joanna em entrevista a VEJA.
A Vênus das Peles – Leopold von Sacher-Masoch
O que as mulheres querem – Maxine Mei-Fung Chung
O efeito cômico surge dos planos longos, repetições embaraçosas e fantasias extravagantes vestidas por Ann, assim como da nudez nada erotizada que exibe por boa parte da duração. Para além das risadas, Joanna ecoa obras do mundo cult, como Secretária (2002) e O Duque de Burgundy (2014), que vieram antes de Cinquenta Tons de Cinza, e encontra no sadomasoquismo um espaço para discutir a sexualidade feminina, apoiada nos acordos e diálogos transparentes que sua prática saudável exige. Ela defende, ainda, que o sexo seja tão digno de representação transparente quanto qualquer outra parte da experiência humana — e assegura que “é mais feminista criar personagens falhas e complexas” do que mocinhas perfeitas. Doa a quem doer, nada passa incólume por sua câmera indiscreta.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899