G.H. era uma mulher que vivia bem, muito bem. Escultora rica, morava na cobertura de um prédio, em um belíssimo e amplo apartamento bem decorado. Certo dia, após a empregada partir, ela se propôs a limpar e organizar a própria casa. A começar pelo quarto agora vazio da funcionária — afinal, acreditava ser ele o mais sujo e repleto de entulho. O cômodo na área de serviço era ambiente desconhecido para G.H., que chegando lá se viu completamente equivocada. O quartinho estava limpo, sem lixo, e trazia sinais um tanto perturbadores deixados pela ex-habitante: em uma das paredes, traços em carvão desenhavam em tamanho real o contorno de um homem, uma mulher e um cão. No guarda-roupa vazio, a surpresa: uma enorme barata viva.
A paixão segundo G. H. – Clarice Lispector
O encontro inesperado entre a grã-fina e o inseto asqueroso é a base da profunda divagação de Clarice Lispector (1920-1977) sobre a vida, o amor, o prazer e a morte em A Paixão segundo G.H. Um dos melhores e mais complexos romances da autora — categorização acirrada, já que sua obra é enigmática e densa por excelência —, o livro de 1964 sempre foi considerado, por razões óbvias, infilmável. Verter um texto de puro fluxo de pensamento em uma trama para o cinema com pouquíssimos acontecimentos parecia uma missão impossível — especialmente sendo o clímax uma cena repulsiva: como é de conhecimento geral dos que ao menos já ouviram falar do livro, a protagonista G.H., finalmente, come a barata. O desafio de transformar literatura em longa foi abraçado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, que refuta o termo “adaptação”. “Eu diria que é uma aproximação, uma reação criativa à leitura”, disse ele a VEJA. O resultado pode ser visto em A Paixão segundo G.H., filme que chega aos cinemas na quinta-feira 11, com Maria Fernanda Cândido na pele da protagonista.
Mesmo introspectiva, a obra de Clarice não deixa de ser acessível. Prova disso é a popularidade duradoura de seus livros, que continuam a ganhar novas edições, traduções em outros países e, vez por outra, tentativas cinematográficas. A Hora da Estrela (1985), dirigido por Suzana Amaral, foi o primeiro a navegar pelas águas turbulentas do texto dito “clariciano”. A trama, porém, é a que mais oferece acontecimentos dentro do universo da autora, facilitando a adaptação — atualmente, o filme passa por um processo de digitalização para voltar aos cinemas em maio. Na seara mais divagante, O Livro dos Prazeres (2021), de Marcela Lordy, optou por um roteiro minimalista de longos silêncios — postura oposta à de A Paixão segundo G.H.
Diário de um filme: A paixão segundo G. H. – Melina Dalboni
Assim como a leitura do romance, ver o novo filme é uma experiência particular, no mínimo, de quem o assiste — para o bem e para o mal. Maria Fernanda hipnotiza com sua beleza clássica e atuação elegante num monólogo no qual interpreta G.H. com as exatas palavras da protagonista no livro. Quando transita pelo apartamento, a câmera amplia a imagem, dando a noção de sua riqueza, assim como de sua solidão. Já no quartinho, os enquadramentos ficam mais fechados e claustrofóbicos, acompanhando a angústia existencial que a atinge. Outros poucos personagens surgem de costas, como os homens com quem ela se relaciona. Só a empregada, Janair (a estreante Samira Nancassa), tem rosto — um aceno ao fato de que é a única personagem do livro a ganhar um nome, considerando que até a protagonista não possui um completo, só as iniciais. Já as cenas com a barata (sim, uma barata de verdade) começam vagas e distantes, até seu retrato completo e repulsivo tomar a tela por mais tempo do que necessário.
A hora da estrela – Clarice Lispector
Ao optar por manter o texto original sem mudar uma vírgula, apenas com cortes e reorganização de sua ordem, Carvalho repete a abordagem feita por ele em 2001 na igualmente difícil adaptação de Lavoura Arcaica, romance cultuado de Raduan Nassar. Ter o texto pronto, porém, não é o mesmo que ter um roteiro — lição aprendida na marra por Melina Dalboni. A roteirista foi a responsável pela criação do que se convencionou chamar de “roteiro-livro” — experiência narrada por ela em Diário de um Filme: A Paixão segundo G.H. (Rocco; 344 páginas, 99,90 reais). “A literatura de Clarice tem muitos significados. Ler o romance com atenção extrema revelou detalhes importantíssimos pouco explorados”, disse Melina. A relação patroa e funcionária é um desses recortes lidos com lupa. “É a empregada que detona a crise existencial dela, não a barata”, lembra a roteirista. Melina narra os pormenores do processo que começou em 2017, quando a equipe assistiu a oficinas com especialistas em literatura e filosofia. Depois, teve de vencer os perrengues de fazer cinema no Brasil até a filmagem num apartamento em Copacabana. Ao entrar no imóvel pela primeira vez, vejam só, uma barata morta os esperava. Com Clarice Lispector, tudo pode surpreender.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887