Filme ‘O Aprendiz’ revela segredo que forjou estilo de Donald Trump
Protagonizado por um impecável Sebastian Stan, a produção ilumina como o político se tornou o populista ruidoso de hoje
O cabelo de Donald Trump é quase tão polêmico quanto ele: por anos, desconfiou-se que o republicano usasse uma portentosa peruca — o que ele fez questão de negar repetidas vezes, oferecendo-se, inclusive, para ter o cabelo puxado. Segundo o controverso livro Fogo e Fúria: por Dentro da Casa Branca de Trump, de Michael Wolff, a cabeleira peculiar do magnata é fruto de uma suposta redução de couro cabeludo que ele teria feito na década de 1980 para corrigir a calvície — verdade ou não, o procedimento é retratado em O Aprendiz, filme de Ali Abbasi que estreou em maio no Festival de Cannes e chega aos cinemas, na quinta-feira 17, cercado de controvérsias.
Protagonizado por Sebastian Stan, que faz um trabalho meticuloso incorporando os trejeitos de Trump, incluindo o indissociável “biquinho” ao falar, o longa explora uma parte pouco falada da vida do ex-presidente americano: os primórdios de sua carreira no ramo imobiliário, que teve o pontapé inicial na década de 1970, quando ele assumiu a empresa do pai. Até então focada em imóveis para a classe média, The Trump Organization voltou-se para os hotéis de luxo nas mãos do herdeiro, que se beneficiou da crise enfrentada por Nova York na época para obter parcerias lucrativas e isenções fiscais polpudas.
Os negócios, mostra o filme, floresceram graças à mentoria de Roy Cohn (Jeremy Strong), advogado que circulava entre os poderosos e usava de métodos no mínimo reprováveis. Os dois se conheceram na década de 1970, quando a empresa da família Trump foi processada por discriminação e violação dos direitos civis ao se recusar a alugar imóveis para negros. Cohn sugeriu que, em vez de se defender, Trump processasse o Departamento de Defesa em 100 milhões de dólares pelas acusações. A estratégia teve utilidade: o caso foi resolvido com um acordo.
A história ilustra como Cohn moldou Trump. Apesar do acordo com o governo, o ricaço não admitiu culpa pela discriminação em nenhum momento, seguindo à risca a cartilha do advogado: não se defenda, sempre ataque; não admita culpa, negue tudo; e sempre clame vitória, nunca a derrota. A julgar pela postura de Trump na política, os ensinamentos foram bem absorvidos. Se Trump era o mentor que demitia maus executivos no reality show O Aprendiz, que o tornou celebridade global em 2004, ele próprio se revelou um discípulo aplicado de Cohn. Hoje, o presidenciável republicano vive na corda bamba da legalidade, desafiando as instituições e extrapolando os limites entre verdade e mentira.
Não à toa, a equipe jurídica do candidato descreveu o longa como “um lixo”, “pura ficção”, e ameaçou processar a trama por “sensacionalizar mentiras já desmascaradas”. Uma delas seria a cena em que Trump estupra a primeira esposa, Ivana (Maria Bakalova): a passagem surgiu de um relato feito pela própria, morta em 2022, no processo de divórcio, em 1990. Segundo ela, Trump a jogou no chão, arrancou tufos de seu cabelo e, em seguida, a violentou. Três anos depois, Ivana voltou atrás, mudando a versão: alegou que a palavra estupro, usada por ela para descrever a agressão do ex-marido falastrão, não deveria ser interpretada de forma literal ou criminosa. De uma coisa o filme não pode ser acusado: ser infiel à essência de Trump. Com visual kitsch e frases de efeito típicas dos trumpistas, O Aprendiz é caricato dos pés aos fios de cabelo. Trata-se de um caso típico de ficção com um bom topete de realidade.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914