Flow: a fofura inovadora da animação que pode surpreender no Oscar
No filme, um gatinho com medo de água enfrenta uma inundação — desenho singelo e feito com pouco dinheiro, mas que esbanja criatividade

A lista de habilidades do cineasta letão Gints Zilbalodis, 30 anos, é notável: além de diretor, ele é animador, compositor, roteirista, iluminador e editor. A gama de talentos, porém, esconde dilemas pessoais. Tímido, introvertido e ansioso, Zilbalodis se tornou autossuficiente como meio de evitar o confronto do trabalho em equipe. Desse receio, e de vários outros, nasceu o belíssimo filme Flow (Letônia/Bélgica/França, 2024), já em cartaz nos cinemas e indicado em duas categorias no Oscar — entre elas, filme internacional, ao lado do brasileiro Ainda Estou Aqui. Na trama, um gatinho cinza e antissocial, que tem medo de água, se vê obrigado a enfrentar seus fantasmas quando uma enchente toma sua casa. Para sobreviver, ele aceita a ajuda de um inusitado grupo de animais, formado por uma capivara, um cachorro e um lêmure, que se refugiam em um barco navegando à deriva — vale ressaltar que nenhum humano integra o elenco. Zilbalodis reflete na trama seus próprios temores: antes um artista solitário, ele transformou seu estúdio, Dream Well, em um espaço colaborativo e trabalhou, pela primeira vez, em parceria com um time de animadores em uma coprodução internacional. O resultado foi o melhor possível.

Elogiado e premiado em festivais, Flow surpreendeu ao conquistar o Globo de Ouro de melhor animação em janeiro, derrubando pesos pesados da indústria como Divertida Mente 2. O filme pop da Pixar custou 200 milhões de dólares ante humildes 3,7 milhões do longa independente. De cara, o feito louvável de Flow é desafiar os métodos estabelecidos (e caríssimos) de fazer animação. Essa arte acabou monopolizada por poucos estúdios com bala para investir nesse tipo de filme, que demanda anos para ficar pronto, além de equipes numerosas e alto investimento técnico — e tem retorno imprevisível nas bilheterias.

Flow cortou boa parte dos custos por ser inteiramente animado com auxílio de um software on-line gratuito chamado Blender, conhecido principalmente por profissionais que trabalham com animação, engenharia e arquitetura. Prático e ágil, o programa atendeu às necessidades do diretor e de sua equipe de vinte pessoas. Outro desafio era a renderização — processo que finaliza digitalmente uma animação. A Pixar, por exemplo, renderiza seus filmes por meio de um supercomputador que combina a potência de 2 000 máquinas. Flow foi finalizado no notebook do diretor, façanha possível graças ao visual mais singelo das cenas.

As limitações da verba enxuta levaram a soluções criativas e técnicas prodigiosas. À primeira vista, Flow causa estranhamento pela qualidade difusa e pixelada da aparência de seus animais. A animação em 3D fotorrealista virou uma norma no setor ao apresentar animais com pelos e penas de alta resolução impecáveis e próximos aos da realidade. Para compensar sua simplicidade visual, os personagens de Flow emulam com fidelidade o comportamento animal, fazendo com que o público se identifique ao reconhecer os movimentos e ações de bichinhos de seu cotidiano. “Nossos animadores foram pagos para passar horas assistindo a vídeos de gatos na internet”, brincou o diretor nas redes sociais, mostrando a ampla pesquisa sobre movimentação e expressões dos animais da trama.
Esqueça, ainda, os usuais bichos falantes como humanos. Outra sacada de mestre da produção foi gravar os sons diretamente das espécies retratadas — apenas a capivara, mais calada, não ajudou muito e teve sua voz natural aguda substituída pelo “falar” mais rouco e amplo de um filhote de camelo. Assim, toda a interação entre os personagens se dá com miados, latidos e grunhidos. No processo, cada um deles passa por transformações — este detalhe, sim, mais próximo do comportamento humano. O gatinho aprende a confiar nos demais, o cachorro a ser menos carente e dependente, o lêmure para de depender da aprovação de outros membros de sua espécie e a capivara, bem, essa só precisou continuar adorável. Flow esbanja fofura e inovação enquanto oferece uma belíssima viagem na tela.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932